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quinta-feira, 8 de outubro de 2009

A volta das cocotes


As cocotes estão de volta. Não as mulheres mundanas da passagem entre os séculos 19 e 20, que inspiraram tantos autores, como Émile Zola e Marcel Proust, mas as cocottes, que em francês são “panelas de barro” ou “de ferro fundido” em que se preparam pratos tradicionais, geralmente refogados com amor e paciência.

E as cocottes se modernizaram tornando-se mignonnes, ou seja, de tamanho individual para que cada um possa saborear uma comida caseira, refogada, quentinha dentro de uma panelinha com tampa. Depois da moda das verrines (pequenos copos individuais para servir caldos e entradas frias ou quentes), e as "colheres para degustação", as cocottes são a nova tendência de uma culinária francesa que quer resgatar gostos tradicionais e adaptá-los à modernidade.

Nada mais chique e ao mesmo tempo aconchegante que usar essas panelinhas individuais para apresentar os mais tradicionais refogados. Porque a comida refogada é a base da culinária de muitos países, e sempre remete a lembranças da infância, da comida maternal, da tradição. Ou seja, de repente essas cocottes têm certo efeito terapêutico, como um certo gosto de revivescência na nossa época, em que tudo tem de ser trend, brand, espumoso e diferente. Em que nosso olfato e paladar, antes de tudo, têm de entender o que é hype e digerir sem arrotos qualquer nova tendência.

Nessas horas, a cocotte é absolutamente freudiana, emocionalmente apaziguadora e muito bonita. Porque essa mundana se tornou fashion, adotando novas linhas e cores, mas com respeito às regras básicas do bem-estar, formas redondas, alças para agarrar e tampa para manter tudo quente. Toque sensual, quase sexy, melhor ainda que um programa da Nigela Lawson.


E ao falar nas cocottes, não posso omitir o restaurante do mesmo nome de Christian Constant, situado no 133 rue Saint Dominique, em Paris, e em que todos os pratos são servidos nessas panelinhas ou em verrines. Christian Constant foi chef do restaurante Les Ambassadeurs do hotel Crillon, em Paris, antes de abrir seu próprio negócio. Hoje, Christian Constant tem três endereços: Les Cocottes, Le Violon d'Ingres e o Café Constant, todos situados na rue Saint Dominique.

Tive a oportunidade de almoçar no Violon d'Ingres, em que não experimentei as famosas cocottes, mas pratos bem interessantes, embora eu tenha ficado um pouco decepcionado com o ambiente um tanto frio e o ris de veau que achei um pouco convencional e malpassado demais para o meu gosto. Mas, pelo menos, tive o prazer de dividir o espaço com ninguém menos que Charles Aznavour...

Pois é, parece até comentário de cocote... Para mostrar o quanto voltaram à moda!

segunda-feira, 28 de setembro de 2009

Tiffany em Paris

O Musée du Luxembourg, em Paris, recebe até 17 de janeiro de 2010 a primeira exposição monográfica de Louis Comfort Tiffany (1848-1933) na Europa.

Filho do empresário Charles Lewis Tiffany, fundador da famosa empresa Tiffany & Co., Louis Comfort Tiffany foi um artista cuja importância é cada vez mais reconhecida, justificando assim plenamente a realização dessa mostra.


A exposição aborda a carreira do artista não somente de um ponto de vista cronológico, mas também temático, com ênfase nos maravilhosos vitrais concebidos por Tiffany e o fascínio que ele tinha pela natureza, a representação de temas vegetais, animais, mas também pelo aspecto religioso. A sua inacreditável criatividade, junto a uma ousadia técnica sempre renovada, faz deste artista um dos mais importantes na virada do século 20, em movimentos artísticos como o Art Nouveau ou o Simbolismo.


Inspirando-se de início em temas orientais, Tiffany vai ao longo de sua carreira desenvolver o gosto pelo exotismo e as inovações tecnológicas. Assim, ele soube utilizar a chegada de eletricidade para criar maravilhosas luminárias inspiradas na natureza, e em que a luz se torna elemento preponderante para que cores e temas pareçam orgânicos, ou seja, vivos.

Tiffany foi um dos artistas americanos mais importantes do começo do século 20, com talento reconhecido e premiado, notadamente na Exposição Universal de 1900, em Paris, e seu legado se estende não apenas à realização de vitrais, mas também de pinturas, joias ou cerâmicas.

Tiffany também foi empresário, tendo criado desde o fim do século 19 a Stourbridge Glass Company, que empregou vários artistas responsáveis pela realização das obras concebidas por ele, e realizou muitos trabalhos de encomenda para magnatas ou estadistas.

E manteve por toda a vida estreitas relações com a Tiffany Company, da qual se tornou diretor artístico depois da morte de seu pai, em 1902.

Por fim, dedicou muito tempo e esforços à construção de sua mansão, Laurelton Hall in Oyster Bay, Long Island (NY), de mais de 240.000 m2 e 84 cômodos, que infelizmente, após ter sido doada à sua fundação para estudantes de artes, e vendida em 1949, acabou sendo destruída por um incêndio em 1957.

Por todos esses motivos, a exposição L. C. Tiffany – Couleurs et Lumière do Musée do Luxembourg é algo incontornável para quem estiver visitando a capital francesa até o próximo mês de janeiro.

Maiores informações podem ser encontradas no site http://www.museeduluxembourg.fr/

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Eventos Culturais 2

Voltando ao assunto do Ano da França no Brasil, não posso deixar de parabenizar a iniciativa de descentralização da programação, que passa por muitos estados e cidades e não se limita ao clássico eixo cultural Rio de Janeiro–São Paulo.

Assim, o estado de Minas Gerais vai receber vários eventos culturais até o mês de novembro que vale a pena conferir:

A cidade de Juiz de Fora está recebendo até o dia 28 de julho o 20º Festival Internacional de Música Colonial Brasileira e Música Antiga. Entre outros, no dia 24, na Igreja do Rosário, a apresentação do conjunto Le Poème Harmonique, com obras de Michel R. de Lalande e Marc Antoine Charpentier; e no dia 25 de julho, no Teatro Pró-Arte, o Grupo Lune et Soleil, composto por músicos brasileiros e franceses de formação erudita e jazz, que interpretará músicas do cinema francês, de Michel Legrand e Vladimir Cosma, e obras de Gershwin.

(Le poème Harmonique)

Juiz de Fora também receberá, de 3 a 8 de agosto, apresentações de rua, como a Compagnie La Truc / Cyril Hernandez, e em novembro a turnê Déclic – Minifestival de Música de Câmara Francesa.

Vários eventos vão acontecer ainda em Minas Gerais, principalmente nas cidades de Belo Horizonte e Ouro Preto.

Entre os outros estados contemplados nas comemorações, vale destacar Bahia, Pernambuco, Ceara e Amazonas, no Norte e Nordeste, e estados mais acostumados a receber eventos internacionais, como Paraná e Rio Grande do Sul, e o Distrito Federal.

Assim, de maio a outubro deste ano, Michel Legrand irá se apresentar com Sinfônicas Brasileiras em São Paulo, Ribeirão Preto (SP), Salvador (BA), Recife (PE), Belém (PA), Cuiabá (MT), Belo Horizonte (MG) e Vitória (ES).

Além de eventos culturais, o Ano da França promove encontros temáticos, vinculados a assuntos que dizem respeito a tecnologia, profissionalização, ciências, etc. Assim, vale destacar o I Fórum Franco-Brasileiro, "Ciência e Sociedade - Biodiversidade, Saúde, Desenvolvimento Sustentável Para Todos", que acontecerá em Macapá (Amapá), de 16 a 23 de outubro.

Por fim, o músico Edgard Scandurra e o grupo Les Provocateurs estão fazendo uma série de apresentações no Sesc Paulista, em que interpretam músicas de Serge Gainsbourg, simpática iniciativa que merece ser destacada.

Quem quiser acompanhar essa formidável profusão de encontros entre os dois países pode encontrar mais detalhes sobre datas, localizações e eventos no site http://anodafrancanobrasil.cultura.gov.br/ do Ministério da Cultura, que oferece um sistema de busca por tema, mês e estado.

A programação do Festival Internacional de Música Colonial e Música Antiga de Juiz de Fora se encontra no site http://www.promusica.org.br

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Eventos Culturais

O Ano da França no Brasil oferece várias oportunidades interessantes e lúdicas de melhor conhecer a cultura francesa. Assim, duas exposições chamaram mais especialmente minha atenção:

O Museu da Língua Portuguesa apresenta até o dia 13 de setembro a mostra O Francês no Brasil em Todos os Sentidos, em que são destacados os pontos de encontro entre os dois idiomas, não somente na literatura, mas também em várias áreas, como a moda, a culinária, a música ou a dança. Embora, a meu ver, um tanto sucinta demais, a mostra tem a vantagem de ser bastante didática e interativa, despertando o interesse dos visitantes. Além do mais, o Museu da Língua Portuguesa é um maravilhoso espaço cultural em plena Estação da Luz, dentro do ambicioso projeto de renovação do centro de São Paulo que, por si só, sempre merece ser lembrado.

O Instituto Tomie Ohtake, por sua vez, recebe até o dia 7 de setembro 84 obras de Jean Dubuffet (1901-1985), entre pinturas, esculturas, desenhos e litografias. Dubuffet foi um artista muito prolífico, cuja obra, que apresenta várias fases, é constituída por milhares de criações realizadas entre 1942 e 1985.

Considerado como um dos fundadores do Art Brut, termo inventado por ele, Dubuffet é mais conhecido pela fase intitulada ciclo Hourloupe, entre 1962 e 1974, caracterizada por traços em forma de quebra-cabeça ou rabiscos sobre fundo branco com espaços preenchidos por cores. Realizado inicialmente no formato de desenhos e pinturas, o ciclo Hourloupe ganha novas dimensões a partir do fim dos anos 1960, com a realização de esculturas e baixos-relevos arquitetônicos, e a utilização de novos materiais.

Conhecido também pelas surpreendentes pinturas e os retratos inspirados em desenhos feitos por crianças e doentes mentais, Dubuffet sempre foi atraído pela experimentação, a inovação e a audácia, oscilando entre figuração e abstração, em que a espontaneidade reina.

Para maiores informações sobre as duas exposições:

http://www.estacaodaluz.org.br/

http://www.institutotomieohtake.org.br/programacao/exposicoes/jean/jean.html

domingo, 5 de julho de 2009

Daniel ou Natanael?

(Van Gogh, Natureza-morta com frutas - 1887)

Dois textos publicados durante esta semana na Folha de SP chamaram minha atenção por serem convergentes, embora a priori tratassem de temas diferentes.

No dia 29 de junho, Álvaro Pereira Júnior dedicou sua coluna Escuta Aqui a Michael Jackson, destacando que com a morte do artista acaba uma época que não tem volta. “Foi o cara que vendeu dezenas de milhões de discos, que vivia como marajá, pendurado na gravadora, que gastava zilhões para fazer videoclipes.” E cita a matéria publicada por Jon Pareles no New York Times, em que o crítico analisou que Jackson era um paradoxo, considerado prodígio enquanto criança, e infantilizado uma vez adulto.

Por sua vez, João Pereira Coutinho publicou no dia 30 de junho uma crônica muito bem-humorada, intitulada Os normalopatas, em que declara que, ao ler o relato da última reunião da American Psychiatric Association sobre as alterações que devem ser feitas no Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorder, percebeu que sofre de boa parte das novas doenças mentais que os cientistas querem acrescentar à lista já existente. Assim, entre compulsão por comida, vício em internet ou e-mail, compulsão por compras, preconceitos e fúrias incontroladas, o colunista assustou-se ao perceber que poderia se encaixar no perfil do perfeito demente.

Ao criar um paralelo, talvez audacioso, entre os dois jornalistas, vejo que, de fato, ambos mostram que saímos definitivamente de uma época para entrar em outra. Não há dúvida que Jackson, assim como muitos outros artistas, simbolizou uma época em que criatividade rimava com audácia. Havia algo saudável em reconhecer a impertinência artística e comportamental, e o dinheiro era um combustível necessário à manifestação dessa ousadia.

Os tempos agora são outros, e os artistas mais conceituados ou se tornam verdadeiros pastores pregando a Palavra divina da boa consciência universal, como Bono ou Sting, ou marionetes sem alma oriundas de vagos “Clubes do Mickey”. Aliás, Britney Spears, por sua repentina e surpreendente "volta à normalidade”, não mereceria ser nomeada “mulher de honra de Stepford”?

Assim, percebemos que, aos poucos, entramos na inquietante época da “normalidade obrigatória” em que (politicamente) correto, saúde, equilíbrio, preservação são palavras de ordem. Superamos Orwell ao nos tornarmos nossos próprios big brothers, em um processo insinuante e assustador de autocontrole, muitas vezes inconsciente, em que assimilamos regras de boa conduta em doses homeopáticas que, porém, podem ser fatais.

Se nosso comportamento, nosso apego, nossa afetividade, por mais banalmente humanos que sejam, correm o risco de ser vistos como desvios, se a ousadia ou a rebeldia artística é percebida como ato de insanidade, podemos perder os sentidos essenciais do gosto e do olfato, para mergulhar na insipidez.

E em vez de conceber a possibilidade de uma ilha como Houellebecq, não seria melhor provarmos os frutos da terra como Gide? Antes sermos o discípulo Natanael do que o clone Daniel!

domingo, 28 de junho de 2009

The Man in the Mirror


Ao saber da morte de Michael Jackson, na última quinta-feira, senti uma infinita tristeza, como se eu estivesse perdendo um ente querido.

Porém, o único disco que comprei do artista foi Thriller, obra-prima da música pop lançada em 1982, ainda na época remota das bolachas.

Antes de Thriller, Jackson era um perfeito desconhecido no meu universo musical – descobri e apreciei Off the Wall­­ depois de ouvir Thriller – e a Jackson Family sempre foi um fenômeno tipicamente norte-americano, de pouca repercussão na França.

Depois de Thriller, não prestei tanta atenção à carreira do artista e acabei sabendo dele muito mais pelo freak show que o acompanhou por muitos anos do que por motivos artísticos.

Enfim, como todo mundo, fiquei curioso quando ele anunciou sua volta aos palcos, embora eu tivesse a sensação que essa decisão fosse mais por motivos principalmente financeiros que artísticos, e não esperasse que a fênix renascesse de suas cinzas sob os céus londrinos.

Sendo assim, não havia motivo sequer para tanta tristeza e para explicar o sentimento de perda que a notícia provocou em mim.

Contudo, nos últimos dias percebi que a comoção é geral e que várias pessoas sentiram a mesma emoção que eu, embora elas também não tivessem sido fãs ardorosas do artista.

Aí, lembrei de 1977 e da morte de Elvis Presley. Na época eu era adolescente e mal sabia quem era o "King of Rock'n'Roll". Para mim, tratava-se de um artista meio gordo e com roupas cafonas que se apresentava nos palcos de Las Vegas.

Entretanto, lembro que meus pais ficaram bastante abalados pela notícia, embora em casa não tivesse nenhum disco do cantor, a não ser um antigo 45 rpm de "Hound Dog", comprado por eles havia muito anos.

E depois, lembrei também da tristeza que senti ao saber da morte de John Lennon e de Freddie Mercury, dois artistas muito mais próximos do meu gosto musical do que o próprio Jackson.

Então, é certo que a comoção gerada pela morte de Michael Jackson ultrapassa o sentimento da perda da pessoa em si para alcançar uma dimensão bigger than life, como foi a representação do poder do próprio artista no imaginário coletivo.

Não há dúvida de que procuramos sempre, mesmo que inconscientemente, ultrapassar nossas limitações naturais. Para fazê-lo, escolhemos alguns eleitos que, por terem dons excepcionais ou simplesmente por estarem no lugar certo na época certa, transformamos em ídolos ou super-heróis por meio de cultos que são verdadeiros atos de sublimação fetichista.

Assim Michael Jackson foi eleito o “Rei do Pop”, o artista universal cujo moonwalk virou fenômeno social universal, em que milhares de pessoas se espelharam. E sua influência artística é tão durável que, ainda hoje, o novo ídolo pop internacional, Justin Timberlake, não esconde, na sua música e nos seus passos de dance, em quem ele se espelhou.

E não há também dúvida de que ídolos ou super-heróis não podem morrer, - pelo menos nunca no auge da carreira ou antes do fim do curso "normal" da vida - porque, ao falecerem, quebram o espelho e nos devolvem, da mais cruel maneira possível, à mera condição de seres finitos e limitados. Então, ao chorar a perda que sentimos com a morte deles, choramos de fato nossa própria perda. Por isso tamanha comoção.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

A divina comédia – existe verdadeira democracia sem cidadania?

Alguns acontecimentos recentes levam à reflexão sobre democracia e cidadania.

É incontestável que alguns países emergentes, entre os quais o Brasil desde o fim dos anos 1980, seguem um formidável processo de aprendizagem da cidadania, em que todos os membros da sociedade são convidados a ter voz ativa, não somente na hora de votar, mas também como guardiões permanentes do princípio de garantia do modelo constitucional democrático.

Este modelo político e societal tem por fundamento princípios imprescindíveis a todo Estado democrático, que são a transparência das instituições e o respeito às leis, além naturalmente de uma boa governança.

A aprendizagem do modelo democrático é em si um processo iniciático que leva progressivamente o aprendiz a conhecer e dominar as ferramentas que usa, no intuito de potencializar seu poder decisório de forma eficiente e produtiva.

Nesse processo iniciático, é incontestável que a mídia tem um papel altamente didático, ao denunciar sistematicamente fatos relevantes de entrave ao processo de transparência das instituições e de desrespeito às leis, sejam estes vinculados ou não a esquemas de corrupção política e/ou financeira.

Por outro lado, não há dúvida que o processo democrático esteja naturalmente vinculado ao aumento do poder aquisitivo, como já o destacou o constitucionalista Maurice Duverger.

A noção de poder aquisitivo pode ser vista de duas maneiras: por um lado, o aumento da renda individual do cidadão, e consequentemente, a melhoria de sua educação, de seu entendimento e de sua participação na vida social. Por outro lado, o desenvolvimento econômico, que torna o país emergente parceiro econômico internacional, obrigando-o a garantir a manutenção de instituições democráticas e transparentes.

De certa forma, o processo de globalização, ao criar mecanismos políticos e financeiros internacionalmente ligados, também cria obrigações e garantias políticas interligadas, cujo desrespeito é fator excludente de participação no mesmo processo.

Todavia, a democracia não pode realmente vingar se não for amparada por uma verdadeira compreensão e aceitação da cidadania por todos os componentes da sociedade. Ao tratar da cidadania, não estou somente me referindo ao contrato social de Rousseau, em que cada indivíduo se coloca à disposição da suprema direção da vontade geral.

Entendo como cidadania a compreensão, a aceitação e o respeito às regras e leis existentes, tanto na sua concepção quanto na sua aplicação e seus limites. O cidadão tem que entender o que lhe é permitido, e o que está além e aquém de seu alcance. Assim, a noção de permissão não diz respeito ao que é simplesmente autorizado por lei ou decreto, mas ao que socialmente é permitido dentro das normas do civismo social.

Assim, o indivíduo, ao receber determinado cargo ou estatuto social, encontra-se imbuído de deveres e direitos. O indivíduo cidadão, ao se deparar com os mesmos deveres e direitos, entende, aceita e respeita os limites impostos pela própria natureza aos direitos e às responsabilidades a ele confiados, e tende a agir com civismo e transparência.

Agora, o indivíduo que se aproveita dos direitos vinculados ao cargo ou estatuto que lhe é atribuído, embora tenha plena consciência de que, por motivos outros que não os de puro direito, se encontra fatualmente aquém ou além desses direitos, desconhece as regras básicas de civismo e transparência.

Assim, não basta implantar, por lei ou regras corporativas, o direito a verbas tais como ajuda de custo, de viagem ou de moradia, para que esses valores sejam intrinsecamente ligados ao cargo. É ainda preciso que o titular do cargo esteja em condições fatuais ou financeiras de pleitear o benefício desse direito.


Da mesma forma, não basta constatar que uma instituição nunca coibiu a contratação de familiares para que isso crie um direito à absolvição implícita dos atos cometidos, como se fossem atos normais de exercício do poder.

Quem está encarregado de poder representativo e dos direitos vinculados a esse poder e faz conscientemente uso impróprio deles, ainda que dentro de um âmbito legal, não se comporta de forma ética. Ao se prevalecer dessa legalidade para erradicar qualquer questionamento quanto à utilização dos direitos e regalias vinculados à sua função, o indivíduo deturpa a noção de legitimidade, desconhece e até despreza seu dever e papel de cidadão.

Ao comportar-se dessa forma, acaba por se tornar culpado de falsidade cívica e anula o próprio princípio de transparência que deve prevalecer para o fortalecimento das instituições democráticas.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

The times they are a-changin’


(projeto para a mediateca de Sendai no Japão)

Dando complemento ao texto Além da imaginação que postei neste blog no último dia 28 de abril, http://metreno.blogspot.com/2009/04/alem-da-imaginacao.html, meu amigo Milton Dutra Pereira me informou da participação de Michel Melot, curador-geral das Bibliotecas junto ao Ministério da Cultura da França, no Segundo Seminário Brasileiro do Livro e da História Editorial, que aconteceu no Rio de Janeiro nesta semana. http://www.livroehistoriaeditorial.pro.br/segundoseminario/index.php/pagina-inicial

Melot, autor de livros sobre a história da ilustração, as estampas e as bibliotecas, constata que, apesar da morte cada vez mais anunciada do livro físico, que seria substituído pelo e-book, nunca houve tantos projetos arquitetônicos relativos a bibliotecas públicas. Além das medidas e dos incentivos políticos e governamentais, Melot percebe que há uma verdadeira renovação do conceito de biblioteca, com a modernização dos equipamentos e a reformulação dos meios de pesquisa, que transformam estes lugares em mediatecas, ou seja, centros culturais, altamente frequentados por quem busca informação e cultura, além do simples empréstimo de livros.

Ele cita como exemplo deste paradoxo as doações feitas por Bill Gates, por meio da Fundação Bill & Melinda Gates, que, após ter doado US$ 20 milhões à biblioteca pública de Seattle em 1998, anunciou em 2008 um programa de implantação de melhoramento do sistema de internet nas bibliotecas de outros estados, para permitir um maior acesso do público aos acervos.

Dessa forma, o e-book não anunciaria o fim do livro de papel, mas seria apenas um dos componentes da grande mudança que nos espera em relação à nossa maneira de receber, assimilar e produzir a informação escrita. Nessa mudança, as mediatecas são de fato grandes centros de comunicação da cultura como um todo, ao facilitar sua visibilidade e seu compartilhamento.

Gostaria ainda de destacar a matéria da coluna Conecte do Jornal da Globo de 14 de maio, que, ao tratar deste assunto, privilegia as novas tecnologias em termo de e-book.

http://g1.globo.com/jornaldaglobo/0,,MUL1126913-16021,00-NA+ERA+DA+TECNOLOGIA+OS+LIVROS+SAO+ELETRONICOS.html

Em todo caso, vejo que estamos diante de um processo irreversível e que nosso desafio não é nada mais (porém, nada menos também) que testar nossa capacidade de adaptação às formas novas de comunicação e, portanto, de compreensão da informação sem que haja a necessidade moldá-la em determinado formato ou suporte.


Assim, achei interessante a declaração de Nando Reis, na edição nº 32 da revista Rolling Stone, que, ao deplorar a diminuição das vendas de discos, disse: “Talvez não tenha tanta gente interessada em discos inteiros. Isto, sim, acho um empobrecimento. A construção de meu esqueleto, meu gosto, minha vida, foi através de álbuns”.


Aí, percebemos claramente o quanto nossa construção cultural (e emocional) depende muito do formato sob o qual recebemos a informação. É incontestável que Nando Reis viveu a grande época dos discos de vinil e principalmente dos álbuns conceituais. Entretanto, não podemos esquecer que o formato de disco “long play” é uma criação puramente mercadológica, resultado do desenvolvimento tecnológico decorrente da invenção de Thomas Edison.


Antigamente, as “canções” eram conhecidas do grande público graças a cantores de rua, a tocadores de realejo, que frequentemente vendiam também a partitura ou a letra. Obras conceituais cantadas ou de longa duração eram óperas e peças de música erudita em geral.

Por outro lado, sem a criação do LP, o que teria sido de obras tão marcantes quanto Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band dos Beatles, Dark Side of the Moon do Pink Floyd ou ainda Thriller de Michael Jackson? E como poderíamos celebrar este ano os 50 anos de Kind of Blue de Miles Davis? São perguntas essenciais porque dizem respeito à nossa construção cultural, nossa percepção emocional, nosso universo sensorial.


E já que os tempos estão mudando, nada melhor para concluir este artigo do que anunciar o lançamento do novo disco de Bob Dylan, Together Through Life. Achei o disco bem interessante, apesar da voz cada vez mais desgastada do artista. Quem estiver interessado poderá adquirir o disco em vários formatos, CD, CD DeLuxe, LP, LP duplo com CD, CD com DVD, etc. Prova de que estamos ainda longe de nos entregar inteiramente à imaterialidade das coisas!

terça-feira, 12 de maio de 2009

Somos todos taxonomistas!


A revista Bravo! publicou no fim de 2008 um número especial sobre as 100 obras essenciais da música erudita que só agora descobri e me apressei em comprar, embora eu não me considere, longe disso, especialista ou mesmo amante assíduo dessa música. Respeito e gosto da música erudita, mas devo reconhecer que não escuto com muita frequência este gênero musical, e prefiro dedicar meus lazeres “auditivos” à descoberta de obras de jazz, rock, chanson française ou ainda MPB. www.revistabravo.com.br

Então, o que me levou a comprar essa revista? Acredito que nada mais do que uma pulsão irrefreável, uma “curiosidade taxonômica” vinculada à descoberta da classificação hierárquica estabelecida por uma publicação conceituada, de importância cultural unanimemente reconhecida.

Bravo! expõe claramente a finalidade da classificação na capa da revista ao declarar que se trata do “ranking das melhores composições da história em todos os gêneros...”. Contudo, há de se notar certa relativização dessa pretensão na carta do editor, Almir de Freitas, em que ele reconhece que o resultado é “uma hierarquização de obras, compositores e intérpretes que, no conjunto dos textos, conta a história dessa arte”. Então, não se trata mais de destacar o melhor, mas o essencial, no sentido do lugar que a obra ocupa na evolução histórica da música erudita. A pesquisa da Bravo! cita as seguintes fontes:
www.bbc.co.uk/radio3/discoveringmusic e www.keepingscore.org, além de inúmeras referenciais bibliográficas.

De certa forma, sinto certo antagonismo entre a análise da essencialidade histórica, que a meu ver deve ser meramente empírica, e a análise da qualidade (‘as melhores composições’) mencionada na capa e que é subjetiva. E sendo assim, por que não ter apresentado essas obras essenciais dentro de um fluxo cronológico e não segundo uma classificação que coloca em último lugar (n.100) a Missa de Notre Dame, obra essencial da Idade Média e, de certa forma, ponto de origem da análise histórica desse gênero musical, e cujo autor, Guillaume de Machaut, “foi precursor da música renascentista e revolucionou a escrita da música sacra ocidental”, como lembra a revista?

Devo reconhecer que, apesar de minha imperícia no assunto tratado, não posso conter minhas reações, críticas, aprovações e frustrações em relação à classificação proposta, tanto no que diz respeito à metodologia escolhida como à ausência de compositores e/ou obras que, a meu ver, têm sua importância histórica. Assim, como omitir Camille Saint-Saëns – que, embora considerado conservador, influenciou compositores como Darius Milhaud (outro esquecido), que por sua vez influenciou muitos artistas de jazz – ou Henry Purcell – compositor predominantemente barroco, mas cuja obra Dido & Enéias é a primeira ópera inglesa. E questiono também (quanta audácia!) a escolha dos Dozes estudos para violão de Heitor Villa-Lobos como única obra citada deste compositor e não um dos seus magníficos Choros.

Todavia, ao reagir dessa forma, não faço outra coisa a não ser confrontar minha subjetividade com a dos autores da lista publicada pela Bravo! Aí não nos encontramos mais na questão do mérito da escolha das obras citadas pela revista ou por mim, mas entramos na questão da necessidade primeira, que é o desejo natural do ser de querer compreender, assimilar e julgar (com seu afeto) as coisas que o rodeiam pela classificação que lhes dá e, consequentemente, de fazer dessa classificação um espelho de si próprio.

Há milhares de publicações sobre esse assunto, e não pretendo, numa postagem de blog, estender-me sobre os trabalhos acadêmicos relativos às classificações que analisam desde as premissas enciclopédicas de Diderot até autores contemporâneos. Entretanto, gostaria de destacar o interessante estudo de Olga Pombo, professora auxiliar da Universidade de Lisboa, investigadora responsável pelo projeto Enciclopédia e Hipertexto, intitulado “Da classificação dos seres à classificação dos saberes”,
http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/investigacao/opombo-classificacao.pdf.

Nesse estudo, Olga Pombo, ao reconhecer a “radicalidade do problema da classificação, da sua inscrição no desejo – e na necessidade primordial – de compreender e ordenar a variedade que nos rodeia”, procura, “no primeiro momento, delimitar o conceito de classificação”. No segundo momento, ela tenta definir “diferentes tipos de classificações mostrando como é possível identificar quatro grandes orientações: uma orientação ontológica (classificação dos seres), uma orientação gnosiológica (classificação das ciências), uma orientação biblioteconómica (classificação dos livros) e uma orientação informacional (classificação das informações)”. Por fim, ela considera que a “emergência de cada uma destas orientações seria correspondente a diferentes fases de desenvolvimento histórico do próprio problema da classificação”.


Recomendo também a leitura do livro A memória das coisas – Ensaios de literatura, cinema e artes plásticas de Maria Esther Maciel – Lamparina Editora (2004), em que a autora reúne ensaios nos quais discute o uso criativo dos sistemas de classificação por parte de escritores, cineastas e artistas contemporâneos, entre os quais Jorge Luis Borges, Peter Greenaway, Arthur Bispo de Rosário, George Perec e Carlos Drummond de Andrade.
http://www.letras.ufmg.br/esthermaciel/

Foi nesse livro que li a seguinte citação de Jose Luis Borges e que tomo a liberdade de reproduzir aqui, por ilustrar perfeitamente a temática do presente artigo: “Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa o espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naus, de ilhas, de peixes, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu próprio rosto”.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Era uma vez a revolução


(A demolição da Bastilha - estampa do século 18 - Museu Carnavalet - Paris)

Épocas de crise econômica, com seu rastro de consequências nefastas, entre as quais o desemprego, a redução do poder aquisitivo, a pobreza e inúmeras falências de empresas e bancos, sempre levam ao questionamento dos sistemas econômicos, políticos e sociais existentes e consequentemente ao ressurgimento de reflexões sobre o fundamento e a finalidade das revoluções.
Dessa forma, e mesmo que sem nexo direto entre si, não é de surpreender que dois textos tenham sido publicados a poucos dias de intervalo sobre o tema da revolução, ambos muito interessantes.

O psicanalista Contardo Calligaris acaba de publicar na Folha de SP de 7 de maio o ensaio Ahmadinejad e Foucault, em que, ao analisar a decisão de cancelamento da visita do presidente do Irã ao Brasil, questiona a análise positiva que Foucault fez da revolução iraniana e, intrinsecamente, nosso almejo, mesmo que inconsciente, de uma esperança coletiva vinculada a movimentos revolucionários [
http://contardocalligaris.blogspot.com/2009/05/ahmadinejad-e-foucault.html ].
Por sua vez, Serge Halimi, escritor e jornalista, ao constatar que “a crise do capitalismo enfraquece as oligarquias que estão no poder”, publicou no Monde Diplomatique de maio um artigo bem documentado e intitulado Éloge des révolutions, em que faz um apanhado das revoluções consideradas historicamente importantes ao analisar nossa atualidade e nossa apatia diante de fatos que poderiam levar a desejos revolucionários que mudassem as sociedades [
http://www.monde-diplomatique.fr/2009/05/HALIMI/17050 ].
Apesar de as análises serem bastante diferentes, há certamente um paralelo a fazer entre o ponto de vista do psicanalista e o do escritor.

Em primeiro lugar, Calligaris declara que não consegue “ponderar os problemas do mundo sem pensar no individual”, enquanto Halimi logo analisa a evolução histórica do pensamento revolucionário em que, após o apogeu dos Estados totalitários (União Soviética e China), as democracias, principalmente nos modelos anglo-saxões, recuperaram a idéia de mudança de sociedade para construir um modelo revolucionário mais político do que social, baseado na lei do mercado.

Apesar de terem focos diferentes, os dois autores referem-se ao Contrato social de Rousseau ao reconhecer que há inevitavelmente no ser humano um desejo de coletividade. “Algo [...] que nos permita renunciar por um tempo a nossas responsabilidades singulares”, segundo Calligaris, enquanto para Halimi os movimentos sociais são antes de tudo defensivos porque “pretendem restabelecer um contrato social que julgam desrespeitado pelos patrões, os latifundiários, os banqueiros, os políticos”.

O que diferencia Calligaris de Halimi, e justamente por causa disso os torna tão essencialmente ligados e interessantes no antagonismo, é a análise da violência que toma conta dos movimentos revolucionários e que leva à eterna pergunta de saber se os meios justificam o fim.

Calligaris, ao citar a Revolução Iraniana, constata que “a ‘vontade geral’ se constrói sempre sobre os cadáveres dos que não concordam”. Refere-se mais explicitamente à opressão em sociedades como, por exemplo, a dos talibãs no Afeganistão, em que há uma mulher que “no porão, ainda está esperando para saber a que horas será apedrejada”.

Halimi, ao reconhecer a violência dos movimentos revolucionários, replica – a quem se escandaliza com os massacres da Revolução Francesa ou Russa, ou dos oficiais do exército de Chang Kai-chek na Revolução Chinesa – que também não se pode ocultar a fome sofrida pelo povo francês durante o Antigo Regime enquanto havia bailes na corte, em Versalhes; o massacre de manifestantes pacifistas em São Petersburgo em janeiro de 1905 pelos soldados de Nicolau II; e os revolucionários chineses queimados vivos nas caldeiras de locomotivas em 1927.

Entretanto, não se trata de um impasse, porque esse antagonismo vem essencialmente de diferenças prismáticas, naturalmente decorrentes do ponto de visto de cada autor.

Calligaris, com o olhar de psicanalista, declara que “o legado irrenunciável da psicanálise é sobretudo a necessidade de pensar nas pessoas uma por uma, sem ilusões e entusiasmos coletivos”. Halimi considera que “para quem a despreza, o erro principal da revolução não é a violência, fenômeno tristemente banal na história, mas, algo que acontece muito raramente, a mudança radical da ordem preestabelecida que acontece por meio de uma guerra entre possuidores e proletários”.

Entretanto, não vejo na reflexão de Calligaris uma negação da necessidade do coletivo, da mesma forma que não há nos comentários de Halimi nenhum rastro de sublimação de massacres politicamente justificáveis. Ambos defendem pontos de vista válidos.

Sinto nesses textos a necessidade de resgatar algo profundo do ser que não se encontra em nenhum modelo de sociedade atual e cuja falta se faz ainda mais crítica diante da crise que está abalando as principais economias mundiais. Trata-se de uma identidade do ser que está cada vez mais apagada e que precisa brilhar de novo no modo individual como no coletivo. Daí a necessidade de repensar a sociedade com ela existe hoje.

Tempos de crise mundial são igualmente tempos de crise pessoal. Tomara que desses milhares de crises individuais nasça alguma mudança coletiva, uma revolução que resgate também o valor do indivíduo dentro da coletividade. E de preferência, sem violência...

terça-feira, 28 de abril de 2009

Além da imaginação




Há uns dias atrás, li o artigo publicado por Brad Stone no New York Times do último dia 5 de abril intitulado ”Is this the future of the digital book?”, em que o jornalista esboça as perspectivas em relação às inovações na área editorial. Diante da crise que vem sofrendo o setor de publicação de livros, o mercado está revendo as formas de apresentação da matéria escrita.

O surgimento do livro eletrônico, hoje já comercializado em vários países no formato e-book com opções de download on-line, leva empresários e tecnólogos a se unirem para definir as novas configurações da mídia digital com o intuito de fazer do livro uma fonte de novas experiências, tornando o próprio e-book, no seu formato atual de simples meio de reprodução e divulgação de textos, algo logo obsoleto.

Assim, as novas perspectivas são de fazer com que o livro digital alie a clássica narração (ficcional ou não) a outros meios de comunicação, como vídeos ou Twitter, conectados a sistemas de leitura multifuncionais, como o iPhone, por exemplo, em que os leitores virtuais poderão interagir com a obra ou até tornar-se autores coletivos.

A combinação de textos, vídeos e redes de compartilhamento em uma única plataforma já está sendo preparada por várias empresas de tecnologia da informática, entre as quais a Vook (
www.vook.tv), cuja meta é providenciar em uma única ferramenta de distribuição soluções tecnológicas completas, com o objetivo de que a leitura se torne uma experiência mais rica e virtualmente compartilhada entre autores e leitores.

Ao eliminar de vez o caráter unidimensional dos livros no formato em que se encontram atualmente (seja livro físico, seja e-book), abrimos novas dimensões para a abordagem da narrativa (ficcional ou informativa) e da arte, em um debate que, a meu ver, vai muito além da questão prosaica, meramente redutora, de saber como driblar a perda de contato físico (prazeroso) com o objeto livro, seja tátil, visual ou olfativo (o estranho poder atrativo do cheiro do papel...).

Como declara Sara Nelson, consultora do setor editorial, entrevistada por Brad Stone: “Se você puser um vídeo dentro de um livro, ele deverá fluir de forma tão natural na história que os leitores nem percebam que estão mudando de meio de comunicação”.


Assim, não estamos mais no campo do conteúdo, mas no da forma. Deveremos mudar nossa abordagem do objeto “livro” até criarmos novas regras de utilização desse objeto de maneira que se tornem comportamentos naturais (ou seja, gestos inconscientemente executados) dentro de um fluxo informativo ou lúdico contínuo.

Mas, por outro lado, estamos diante de uma expectativa tão excitante quanto assustadora, porque nos conduz a mergulhar em um movimento irreversível de mudanças comportamentais que deverá nos levar progressivamente a relativizar ou até excluir do nosso vocabulário raciocinativo, intrinsecamente vinculado à noção de objeto, a palavra “livro”, da mesma forma que estamos progressivamente apagando o objeto “disco” de nosso cotidiano para substituí-lo por mp3 e download.

E, apesar de reconhecermos os efeitos positivos que essas mudanças estão trazendo para nós (a começar pelo fantástico crescimento da intercomunicação), não podemos deixar de sentir certa tristeza (mesclada ao medo da perda) ao desfazermo-nos aos poucos do sensório baseado na palpabilidade das coisas, o qual permanece por enquanto a matriz de construção de nossa perceptividade emotiva.

Aí surge a questão da recomposição de nossa afetividade mediante novos códigos de leitura ou novas ferramentas, em um futuro que já estamos conjugando no presente e que, por vezes, nos parece ainda distante, além de nossa imaginação. É um dos assuntos abordados pelo excelente livro O chip e o caleidoscópio – Reflexões sobre as novas mídias, obra coletiva organizada por Lucia Leão - Editora Senac SP (2005), que inclui notadamente o ensaio A interatividade e a construção do sentido no ciberespaço, de Eduardo Cardoso Braga, em que o autor declara: “A experiência do link não se resume à decodificação e construção de significativo cognitivo. Ela também é emoção, sentimento. [...] Os signos dispersos estão à espera de uma vivência e de uma nova organização construídas por um navegar que descobre e, ao descobrir, constrói o sentido”. http://www.lucialeao.pro.br/writings.htm

segunda-feira, 13 de abril de 2009

A divina comédia - A sina do ensino



Foi com muito interesse que li, na Folha de SP de 08 de abril, o artigo de Marcelo Coelho sobre o filme Entre os muros da escola, de Laurent Cantet. http://marcelocoelho.folha.blog.uol.com.br/ Esse filme, que conquistou a Palma de Ouro em Cannes em 2008 e fez muito sucesso na França, seu país de origem, expõe sem nenhum disfarce a conturbada relação entre um professor e seus alunos em uma classe de um colégio público do 20º arrondissement (distrito) de Paris. Os conflitos são ainda mais exacerbados porque a classe é multirracial, composta por alunos de diferentes etnias, culturas e religiões (árabes, africanos, antilhanos, asiáticos, além de europeus).

Entretanto, se o sociólogo e jornalista reconhece que “uma política centrada nas ‘diferenças’, nas ‘identidades’ sem dúvida terminaria fragmentando demais a sociedade”, constata também “uma falta assustadora de flexibilidade e de afeto” que “destrói por dentro aquele sistema educacional organizadíssimo – e cego para as necessidades de cada ser humano, aluno ou professor”.

A meu ver, a análise de Coelho não deixa de ser pertinente, embora não contemple todos os fatos históricos e culturais que levam o sistema educacional francês ao colapso apresentado no filme.

É imprescindível lembrar que o ensino fundamental francês é enraizado nos princípios de um sistema educacional laico elaborado no fim do século 19. De fato, vigora até hoje a idéia segundo a qual a escola deve ser “gratuita, laica e obrigatória”, defendida por Jules Ferry, ministro da Educação e presidente do Conselho da Terceira República da França entre 1879 e 1885. Além disso, a “instrução” (e não a “escolarização”) tornou-se obrigatória. Isto é, independentemente do lugar em que estiverem estudando, todas as crianças deverão obrigatoriamente passar pelo funil de um ensinamento padronizado de normas e matérias que incluem, entre outras, a instrução cívica e moral.


No filme de Cantet, podemos perceber o quanto essas regras de padronização do sistema educacional continuam totalmente aplicadas hoje. Assim, o professor parece incapaz de fugir dos moldes e limites do programa educacional obrigatório definido pelo Ministério da Educação, e tenta “ensinar” a poesia de Rimbaud a alunos que mal conseguem se expressar em um francês básico se este não for temperado por gírias e expressões que servem como parâmetros de identificação tribal (ou seja, de alcance ainda menor do que se fossem expressões étnicas) e são totalmente desprovidas da possibilidade de comunicação e/ou intercâmbio com quem não for membro da tribo.

(elenco do filme Entre os muros da escola)

Por outro lado, e como o destacou judiciosamente Coelho, quando se percebe um começo de comunicação, ou seja, quando “uma pequena luz brilha nos olhos do aluno indolente”, mesmo que hesitante, ela é imediatamente apagada pela retórica intragável do sistema educacional e das ferramentas socioeducativas de que se serve o professor. O despertar do interesse nunca será visto ou reconhecido como o primeiro sopro de criatividade ou o primeiro passo de um crescimento individual, mas deverá imediatamente atender à cobrança comportamental do estudante para se tornar bom aluno, isto é, aquele que absorve as informações recebidas – e nelas se espelha – no intuito de apresentar resultados satisfatórios dentro dos critérios acadêmicos de avaliação de desempenho. Esse conceito é invariavelmente destinado a fracassar.Contudo, há de se perguntar se o fracasso do sistema educacional retratado pelo filme é intrinsecamente vinculado ao meio socioeconômico em que se ministra o ensino, ou se podemos generalizar esse insucesso ao sistema como um todo.

É incontestável que os maiores conflitos registrados no sistema educacional francês acontecem principalmente em instituições de ensino que atendem meios socialmente críticos ou se situam em regiões economicamente desfavorecidas. Outros cineastas antes de Cantet narraram as dificuldades e os conflitos vividos por professores e alunos, como, por exemplo, Bertrand Tavernier em Quando tudo começa (1999). Por sua vez, o filme de Cantet mostra de forma clara que a impossibilidade de comunicação que existe entre professor e alunos também é flagrante entre os próprios alunos, e atinge o núcleo familiar desses jovens. Aí a incomunicabilidade se torna um fator agravante porque generalizado, que transborda os muros da escola para atingir a sociedade como um todo. Percebemos muito bem esse problema na cena em que a mãe de um aluno, africana, convocada a comparecer perante o conselho de disciplina da escola que vai decidir sobre a possível expulsão de seu filho, precisa do auxilio desse mesmo filho (ou seja, do acusado) para entender o que lhe está sendo dito e perguntado, pelo simples motivo de que ela não fala uma só palavra de francês (e, por extensão, não entende o que está fazendo nessa reunião, nem a importância sociossimbólica desse conselho dentro da estrutura educacional francesa).


Agora, ao assistirmos ao filme A bela Junie (2008) de Christophe Honoré, não percebemos os mesmos conflitos. Não somente porque o roteiro não trata desse assunto, mas porque a história se passa em um colégio de um dos arrondissements mais ricos da Paris, cujos alunos pertencem todos a famílias de classe A ou B e não parecem ter problema de identificação com os programas de ensino dessa escola, em que são até ministradas aulas de italiano e organizadas viagens culturais internacionais. Dessa forma, mesmo que o filme retrate crises pessoais e existenciais, de modo algum se percebe, entre alunos e professores, qualquer zona de conflito que se fundamente em uma incompreensão das matérias ensinadas ou que seja resultado da impossibilidade de comunicação entre os vários grupos distintos e constitutivos do núcleo escolar em que se desenrola a trama.


Percebemos assim, em outras palavras, que a adequação do sistema educacional às aspirações e metas de determinados grupos socioeconômicos (e, consequentemente, culturais) depende da identificação desses grupos com o formato e o conteúdo do ensino.

Então, a escola que não for dinâmica, flexível e progressista corre o risco de não ser a matriz que servirá para moldar as futuras gerações às necessidades evolutivas da sociedade. Pois a França, por ter-se transformado em uma sociedade multirracial (com a migração em massa de diferentes etnias devido ao fim do colonialismo nos países da África e também em razão dos fatores socioeconômicos da Europa oriental e mais recentemente da Ásia), deve continuar a adequar progressivamente seu sistema educacional para responder às mudanças geradas por essa evolução.

De outro modo, a escola que se tornar uma simples incubadora, cuja função for meramente assegurar a transmissão inabalável, controlada e predeterminada de estigmas socioculturais de identificação de determinado grupo como se fosse uma preciosa herança, acabará por fracassar quando se deparar com algo (ou alguém) fora dos padrões. Consequentemente, quem não pertencer a esse grupo deverá adaptar-se, a todo custo, ou será descartado, porque o maquinário atende padrões determinados pelo grupo dominante.

Dessa maneira, entendemos melhor a origem dos conflitos retratados pelo filme de Cantet, principalmente no que diz respeito à impossibilidade de o professor (e de todo o sistema escolar, nele representado) se comunicar com alunos que são nada menos que os componentes da futura sociedade francesa.

Por outro lado, percebemos no filme o quanto esses componentes da futura sociedade também são contraditórios, fragmentados e geradores de conflitos. E podemos vislumbrar objetivamente os motivos que levam o sistema educacional a não ser tão flexível e evolutivo, como se, pela rigidez que demonstra, fosse o guardião simbólico da coesão nacional.

Portanto, diante da dificuldade de reversão desse quadro ou de soluções que emanem do sistema educacional em si, outras saídas tem sido tentadas. Como acontece de forma cada vez mais corrente não somente na França mas no nível mundial, soluções diferenciadas de educação têm sido encontradas em estruturas nem estatais nem acadêmicas (como associações, ONGs, etc.) que oferecem formas alternativas, flexíveis e poligonais de ensino, mais adequadas às demandas da sociedade plural.

quarta-feira, 8 de abril de 2009

Afeto na arte e arte da afetação

Acabou de ser lançado na Europa o 1º disco do cantor francês Sliimy, intitulado Paint Your Face. Sliimy ficou conhecido por ter regravado e divulgado pelo site YouTube, a exemplo de Lily Allen, a canção “Womanizer” de Britney Spears. Recentemente, fez seu coming out na televisão francesa e sua orientação sexual está nitidamente celebrada ao longo desse disco. Entretanto, mesmo que tudo isso não passe de uma hábil campanha de divulgação, há de se reconhecer que esse primeiro trabalho é muito agradável. Cumpre totalmente sua tarefa de ser um disco perfeito para alegrar a chegada da primavera européia ao misturar com certo êxito os ingredientes musicais e figurativos que fizeram o sucesso dos primeiros trabalhos de Mika e Lily Allen (definitivamente uma referência para Sliimy). Vejam o clipe bem divertido do primeiro single, ”Wake up”, no seguinte endereço: http://www.youtube.com/watch?v=pccguTaYDLQ&feature=related

Todavia, voltando às declarações de Sliimy que repercutiram positivamente para a divulgação do disco, há de se reconhecer que a arte da afetação sempre foi uma forma recorrente de expressão do afeto na arte. E se a evolução da moral e dos costumes, embora ainda imperfeita, permite e favorece a revelação da orientação sexual (mesmo que ainda reservada a certa “elite” sócio-econômico-cultural e ritualizada pelo coming out batismal), sempre houve uma absolvição subjacente do público para quem se vestisse de uma aura de afetação no intuito de representar sua arte e, consequentemente, transmitir suas emoções.

E se os reis europeus da Renascença e do Século das Luzes não hesitavam em enfeitar-se com joias, plumas, bordados, perucas, além de maquilagem, em uma ostentação de poder e riqueza teatralizada de forma pavonesca, alguns de nossos astros atuais, independentemente da expressão artística que escolheram, utilizam-se de símbolos semelhantes a fim de convidar a audiência a coroá-los e até sacralizá-los por meio de rituais pagãos, como é caso de Ney Matogrosso, Cauby Peixoto, John Galliano ou Freddie Mercury, entre outros.

Justamente porque a representação teatralizada dessa coroação funciona como um artefato que desnatura o próprio ato, ou seja, torna-o não natural e meramente representativo e simbólico, há uma aceitação ampla da afetação por parte do público, que vai além de todos os preconceitos sexuais e desarma qualquer ironia ou zombaria. Por outro lado, essa afetação, por ser ousada, funciona como uma rebeldia moral e sexual transgressiva com a qual o público se identifica de forma prazerosa.

Se seguirmos esse raciocínio como vetor, ao percorrermos as variantes da expressão da afetação dentro do ritual da representação artística, perceberemos que, por trás das diferentes formas de representação, existe uma analogia na finalidade do ato que é apenas a manifestação apurada do afeto por meio da arte.

E finalmente, ao se utilizar da afetação, o artista mostra seu afeto, despindo-se aos poucos, até ficar nu diante do público. E assim, ao mostrar sua própria nudez por meio da afetação, que em si é uma forma exacerbada da manifestação da emoção, ele acaba por magnificar sua própria emoção e conquistar o afeto do público em retribuição a esse ato de total entrega.

Para outras informações, recomendo os seguintes sites: http://www2.uol.com.br/neymatogrosso/; http://www.cauby.com.br/; http://www.mikasounds.com/; http://www.myspace.com/sliimy; http://www.johngalliano.com/

quarta-feira, 25 de março de 2009

A divina comédia - Ignorantus, ignoranta, ignorantum!


(cena de O doente imaginário de Molière)

Ser ou não ser antenado? Eterno dilema. Estar por dentro do babado, do hype. Grande preocupação para quem busca espelhar-se em reflexos alheios, em uma vã procura pela própria identidade.

Frequentemente, deparo-me com matérias, comentários, resenhas, críticas de pessoas que se pretendem antenadas e que usam isso como se fosse sinônimo de certo estatuto. Como se o fato de ter ouvido falar, ter visto, ter lido fosse uma alavanca social, desvinculada de qualquer apreciação do valor do conteúdo. Como se o conhecimento se medisse por volume, tamanho, e não qualidade. Como se a informação fosse uma comida pronta vendida por quilo.

De fato, há de se reconhecer que os novos meios de comunicação e principalmente a internet, ao acelerar e ampliar a propagação das notícias, são ferramentas válidas e essenciais para que a informação atinja um número cada vez maior de pessoas.

Entretanto, estamos de novo falando de velocidade, tamanho, números, e não de qualidade. Os blogs (entre os quais este aqui) são outra fonte de comunicação, porém nem sempre bem utilizada seja por seus criadores ou seus seguidores.

É insuperável o fato de que, em uma época em que a pressa prima sobre a paciência e a falta de tempo vem constantemente abocanhar pedacinhos de nossa predisposição para o ócio, deparamo-nos com uma emergência informativa que nem sempre sabemos enfrentar, organizar ou assimilar.

Mas como essa emergência se tornou a pulsação que parece nos mover, nos levar adiante, acatamos a tudo e qualquer coisa para não parecermos incultos ou defasados. Há uma síndrome de pânico, um temor de parecer ou ser dedado como ignaro.

Ignorantus, ignoranta, ignorantum!, exclama Toinette em referência à hipocondria desatinada de Argan no Doente imaginário de Molière. Vemos, nessa ironia, que o pavor da ignorância não vem de hoje, sempre fez parte dos medos íntimos do homem, sempre foi motivo de desprezo, zombaria e rejeição social. Todavia, tornou-se certamente ainda mais relevante à medida que a cobrança do conhecimento veio se fortalecendo junto à aparição de novos meios de divulgação da informação, cada vez mais velozes, poderosos e eficientes.

E há realmente que louvar essas novas tecnologias e reconhecer que são até requintes cujos recursos mal sabemos utilizar. Há também que exaltar os tempos atuais no que oferecem em termos de informação, conhecimento, compartilhamento, formas diversificadas e ricas de expressão.

Mas ao mesmo tempo devemos nos redimensionar diante da imensidão informativa, nos situar, e reconhecer nosso próprio limite. Não de maneira submissa, mas de forma justa e desprendida. Ao dimensionarmos nossos limites, ao nos enxergarmos como seres que têm fim, podemos finalmente aprender a respeitar o incomensurável.

E ao respeitar o que é infinito, conseguiremos redirecionar nossa busca da informação, primando pela qualidade e pelo aprofundamento no que nos interessa ou nos dá prazer, em vez de engolir avidamente, de uma só bocada, iguarias ou dejetos, com um frenesi cego e insaciável, em nome de um suposto estatuto, de um reconhecimento social ou uma identificação tribal.