terça-feira, 12 de maio de 2009

Somos todos taxonomistas!


A revista Bravo! publicou no fim de 2008 um número especial sobre as 100 obras essenciais da música erudita que só agora descobri e me apressei em comprar, embora eu não me considere, longe disso, especialista ou mesmo amante assíduo dessa música. Respeito e gosto da música erudita, mas devo reconhecer que não escuto com muita frequência este gênero musical, e prefiro dedicar meus lazeres “auditivos” à descoberta de obras de jazz, rock, chanson française ou ainda MPB. www.revistabravo.com.br

Então, o que me levou a comprar essa revista? Acredito que nada mais do que uma pulsão irrefreável, uma “curiosidade taxonômica” vinculada à descoberta da classificação hierárquica estabelecida por uma publicação conceituada, de importância cultural unanimemente reconhecida.

Bravo! expõe claramente a finalidade da classificação na capa da revista ao declarar que se trata do “ranking das melhores composições da história em todos os gêneros...”. Contudo, há de se notar certa relativização dessa pretensão na carta do editor, Almir de Freitas, em que ele reconhece que o resultado é “uma hierarquização de obras, compositores e intérpretes que, no conjunto dos textos, conta a história dessa arte”. Então, não se trata mais de destacar o melhor, mas o essencial, no sentido do lugar que a obra ocupa na evolução histórica da música erudita. A pesquisa da Bravo! cita as seguintes fontes:
www.bbc.co.uk/radio3/discoveringmusic e www.keepingscore.org, além de inúmeras referenciais bibliográficas.

De certa forma, sinto certo antagonismo entre a análise da essencialidade histórica, que a meu ver deve ser meramente empírica, e a análise da qualidade (‘as melhores composições’) mencionada na capa e que é subjetiva. E sendo assim, por que não ter apresentado essas obras essenciais dentro de um fluxo cronológico e não segundo uma classificação que coloca em último lugar (n.100) a Missa de Notre Dame, obra essencial da Idade Média e, de certa forma, ponto de origem da análise histórica desse gênero musical, e cujo autor, Guillaume de Machaut, “foi precursor da música renascentista e revolucionou a escrita da música sacra ocidental”, como lembra a revista?

Devo reconhecer que, apesar de minha imperícia no assunto tratado, não posso conter minhas reações, críticas, aprovações e frustrações em relação à classificação proposta, tanto no que diz respeito à metodologia escolhida como à ausência de compositores e/ou obras que, a meu ver, têm sua importância histórica. Assim, como omitir Camille Saint-Saëns – que, embora considerado conservador, influenciou compositores como Darius Milhaud (outro esquecido), que por sua vez influenciou muitos artistas de jazz – ou Henry Purcell – compositor predominantemente barroco, mas cuja obra Dido & Enéias é a primeira ópera inglesa. E questiono também (quanta audácia!) a escolha dos Dozes estudos para violão de Heitor Villa-Lobos como única obra citada deste compositor e não um dos seus magníficos Choros.

Todavia, ao reagir dessa forma, não faço outra coisa a não ser confrontar minha subjetividade com a dos autores da lista publicada pela Bravo! Aí não nos encontramos mais na questão do mérito da escolha das obras citadas pela revista ou por mim, mas entramos na questão da necessidade primeira, que é o desejo natural do ser de querer compreender, assimilar e julgar (com seu afeto) as coisas que o rodeiam pela classificação que lhes dá e, consequentemente, de fazer dessa classificação um espelho de si próprio.

Há milhares de publicações sobre esse assunto, e não pretendo, numa postagem de blog, estender-me sobre os trabalhos acadêmicos relativos às classificações que analisam desde as premissas enciclopédicas de Diderot até autores contemporâneos. Entretanto, gostaria de destacar o interessante estudo de Olga Pombo, professora auxiliar da Universidade de Lisboa, investigadora responsável pelo projeto Enciclopédia e Hipertexto, intitulado “Da classificação dos seres à classificação dos saberes”,
http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/investigacao/opombo-classificacao.pdf.

Nesse estudo, Olga Pombo, ao reconhecer a “radicalidade do problema da classificação, da sua inscrição no desejo – e na necessidade primordial – de compreender e ordenar a variedade que nos rodeia”, procura, “no primeiro momento, delimitar o conceito de classificação”. No segundo momento, ela tenta definir “diferentes tipos de classificações mostrando como é possível identificar quatro grandes orientações: uma orientação ontológica (classificação dos seres), uma orientação gnosiológica (classificação das ciências), uma orientação biblioteconómica (classificação dos livros) e uma orientação informacional (classificação das informações)”. Por fim, ela considera que a “emergência de cada uma destas orientações seria correspondente a diferentes fases de desenvolvimento histórico do próprio problema da classificação”.


Recomendo também a leitura do livro A memória das coisas – Ensaios de literatura, cinema e artes plásticas de Maria Esther Maciel – Lamparina Editora (2004), em que a autora reúne ensaios nos quais discute o uso criativo dos sistemas de classificação por parte de escritores, cineastas e artistas contemporâneos, entre os quais Jorge Luis Borges, Peter Greenaway, Arthur Bispo de Rosário, George Perec e Carlos Drummond de Andrade.
http://www.letras.ufmg.br/esthermaciel/

Foi nesse livro que li a seguinte citação de Jose Luis Borges e que tomo a liberdade de reproduzir aqui, por ilustrar perfeitamente a temática do presente artigo: “Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa o espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naus, de ilhas, de peixes, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu próprio rosto”.

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