segunda-feira, 13 de abril de 2009

A divina comédia - A sina do ensino



Foi com muito interesse que li, na Folha de SP de 08 de abril, o artigo de Marcelo Coelho sobre o filme Entre os muros da escola, de Laurent Cantet. http://marcelocoelho.folha.blog.uol.com.br/ Esse filme, que conquistou a Palma de Ouro em Cannes em 2008 e fez muito sucesso na França, seu país de origem, expõe sem nenhum disfarce a conturbada relação entre um professor e seus alunos em uma classe de um colégio público do 20º arrondissement (distrito) de Paris. Os conflitos são ainda mais exacerbados porque a classe é multirracial, composta por alunos de diferentes etnias, culturas e religiões (árabes, africanos, antilhanos, asiáticos, além de europeus).

Entretanto, se o sociólogo e jornalista reconhece que “uma política centrada nas ‘diferenças’, nas ‘identidades’ sem dúvida terminaria fragmentando demais a sociedade”, constata também “uma falta assustadora de flexibilidade e de afeto” que “destrói por dentro aquele sistema educacional organizadíssimo – e cego para as necessidades de cada ser humano, aluno ou professor”.

A meu ver, a análise de Coelho não deixa de ser pertinente, embora não contemple todos os fatos históricos e culturais que levam o sistema educacional francês ao colapso apresentado no filme.

É imprescindível lembrar que o ensino fundamental francês é enraizado nos princípios de um sistema educacional laico elaborado no fim do século 19. De fato, vigora até hoje a idéia segundo a qual a escola deve ser “gratuita, laica e obrigatória”, defendida por Jules Ferry, ministro da Educação e presidente do Conselho da Terceira República da França entre 1879 e 1885. Além disso, a “instrução” (e não a “escolarização”) tornou-se obrigatória. Isto é, independentemente do lugar em que estiverem estudando, todas as crianças deverão obrigatoriamente passar pelo funil de um ensinamento padronizado de normas e matérias que incluem, entre outras, a instrução cívica e moral.


No filme de Cantet, podemos perceber o quanto essas regras de padronização do sistema educacional continuam totalmente aplicadas hoje. Assim, o professor parece incapaz de fugir dos moldes e limites do programa educacional obrigatório definido pelo Ministério da Educação, e tenta “ensinar” a poesia de Rimbaud a alunos que mal conseguem se expressar em um francês básico se este não for temperado por gírias e expressões que servem como parâmetros de identificação tribal (ou seja, de alcance ainda menor do que se fossem expressões étnicas) e são totalmente desprovidas da possibilidade de comunicação e/ou intercâmbio com quem não for membro da tribo.

(elenco do filme Entre os muros da escola)

Por outro lado, e como o destacou judiciosamente Coelho, quando se percebe um começo de comunicação, ou seja, quando “uma pequena luz brilha nos olhos do aluno indolente”, mesmo que hesitante, ela é imediatamente apagada pela retórica intragável do sistema educacional e das ferramentas socioeducativas de que se serve o professor. O despertar do interesse nunca será visto ou reconhecido como o primeiro sopro de criatividade ou o primeiro passo de um crescimento individual, mas deverá imediatamente atender à cobrança comportamental do estudante para se tornar bom aluno, isto é, aquele que absorve as informações recebidas – e nelas se espelha – no intuito de apresentar resultados satisfatórios dentro dos critérios acadêmicos de avaliação de desempenho. Esse conceito é invariavelmente destinado a fracassar.Contudo, há de se perguntar se o fracasso do sistema educacional retratado pelo filme é intrinsecamente vinculado ao meio socioeconômico em que se ministra o ensino, ou se podemos generalizar esse insucesso ao sistema como um todo.

É incontestável que os maiores conflitos registrados no sistema educacional francês acontecem principalmente em instituições de ensino que atendem meios socialmente críticos ou se situam em regiões economicamente desfavorecidas. Outros cineastas antes de Cantet narraram as dificuldades e os conflitos vividos por professores e alunos, como, por exemplo, Bertrand Tavernier em Quando tudo começa (1999). Por sua vez, o filme de Cantet mostra de forma clara que a impossibilidade de comunicação que existe entre professor e alunos também é flagrante entre os próprios alunos, e atinge o núcleo familiar desses jovens. Aí a incomunicabilidade se torna um fator agravante porque generalizado, que transborda os muros da escola para atingir a sociedade como um todo. Percebemos muito bem esse problema na cena em que a mãe de um aluno, africana, convocada a comparecer perante o conselho de disciplina da escola que vai decidir sobre a possível expulsão de seu filho, precisa do auxilio desse mesmo filho (ou seja, do acusado) para entender o que lhe está sendo dito e perguntado, pelo simples motivo de que ela não fala uma só palavra de francês (e, por extensão, não entende o que está fazendo nessa reunião, nem a importância sociossimbólica desse conselho dentro da estrutura educacional francesa).


Agora, ao assistirmos ao filme A bela Junie (2008) de Christophe Honoré, não percebemos os mesmos conflitos. Não somente porque o roteiro não trata desse assunto, mas porque a história se passa em um colégio de um dos arrondissements mais ricos da Paris, cujos alunos pertencem todos a famílias de classe A ou B e não parecem ter problema de identificação com os programas de ensino dessa escola, em que são até ministradas aulas de italiano e organizadas viagens culturais internacionais. Dessa forma, mesmo que o filme retrate crises pessoais e existenciais, de modo algum se percebe, entre alunos e professores, qualquer zona de conflito que se fundamente em uma incompreensão das matérias ensinadas ou que seja resultado da impossibilidade de comunicação entre os vários grupos distintos e constitutivos do núcleo escolar em que se desenrola a trama.


Percebemos assim, em outras palavras, que a adequação do sistema educacional às aspirações e metas de determinados grupos socioeconômicos (e, consequentemente, culturais) depende da identificação desses grupos com o formato e o conteúdo do ensino.

Então, a escola que não for dinâmica, flexível e progressista corre o risco de não ser a matriz que servirá para moldar as futuras gerações às necessidades evolutivas da sociedade. Pois a França, por ter-se transformado em uma sociedade multirracial (com a migração em massa de diferentes etnias devido ao fim do colonialismo nos países da África e também em razão dos fatores socioeconômicos da Europa oriental e mais recentemente da Ásia), deve continuar a adequar progressivamente seu sistema educacional para responder às mudanças geradas por essa evolução.

De outro modo, a escola que se tornar uma simples incubadora, cuja função for meramente assegurar a transmissão inabalável, controlada e predeterminada de estigmas socioculturais de identificação de determinado grupo como se fosse uma preciosa herança, acabará por fracassar quando se deparar com algo (ou alguém) fora dos padrões. Consequentemente, quem não pertencer a esse grupo deverá adaptar-se, a todo custo, ou será descartado, porque o maquinário atende padrões determinados pelo grupo dominante.

Dessa maneira, entendemos melhor a origem dos conflitos retratados pelo filme de Cantet, principalmente no que diz respeito à impossibilidade de o professor (e de todo o sistema escolar, nele representado) se comunicar com alunos que são nada menos que os componentes da futura sociedade francesa.

Por outro lado, percebemos no filme o quanto esses componentes da futura sociedade também são contraditórios, fragmentados e geradores de conflitos. E podemos vislumbrar objetivamente os motivos que levam o sistema educacional a não ser tão flexível e evolutivo, como se, pela rigidez que demonstra, fosse o guardião simbólico da coesão nacional.

Portanto, diante da dificuldade de reversão desse quadro ou de soluções que emanem do sistema educacional em si, outras saídas tem sido tentadas. Como acontece de forma cada vez mais corrente não somente na França mas no nível mundial, soluções diferenciadas de educação têm sido encontradas em estruturas nem estatais nem acadêmicas (como associações, ONGs, etc.) que oferecem formas alternativas, flexíveis e poligonais de ensino, mais adequadas às demandas da sociedade plural.

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