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quinta-feira, 18 de junho de 2009

A divina comédia – existe verdadeira democracia sem cidadania?

Alguns acontecimentos recentes levam à reflexão sobre democracia e cidadania.

É incontestável que alguns países emergentes, entre os quais o Brasil desde o fim dos anos 1980, seguem um formidável processo de aprendizagem da cidadania, em que todos os membros da sociedade são convidados a ter voz ativa, não somente na hora de votar, mas também como guardiões permanentes do princípio de garantia do modelo constitucional democrático.

Este modelo político e societal tem por fundamento princípios imprescindíveis a todo Estado democrático, que são a transparência das instituições e o respeito às leis, além naturalmente de uma boa governança.

A aprendizagem do modelo democrático é em si um processo iniciático que leva progressivamente o aprendiz a conhecer e dominar as ferramentas que usa, no intuito de potencializar seu poder decisório de forma eficiente e produtiva.

Nesse processo iniciático, é incontestável que a mídia tem um papel altamente didático, ao denunciar sistematicamente fatos relevantes de entrave ao processo de transparência das instituições e de desrespeito às leis, sejam estes vinculados ou não a esquemas de corrupção política e/ou financeira.

Por outro lado, não há dúvida que o processo democrático esteja naturalmente vinculado ao aumento do poder aquisitivo, como já o destacou o constitucionalista Maurice Duverger.

A noção de poder aquisitivo pode ser vista de duas maneiras: por um lado, o aumento da renda individual do cidadão, e consequentemente, a melhoria de sua educação, de seu entendimento e de sua participação na vida social. Por outro lado, o desenvolvimento econômico, que torna o país emergente parceiro econômico internacional, obrigando-o a garantir a manutenção de instituições democráticas e transparentes.

De certa forma, o processo de globalização, ao criar mecanismos políticos e financeiros internacionalmente ligados, também cria obrigações e garantias políticas interligadas, cujo desrespeito é fator excludente de participação no mesmo processo.

Todavia, a democracia não pode realmente vingar se não for amparada por uma verdadeira compreensão e aceitação da cidadania por todos os componentes da sociedade. Ao tratar da cidadania, não estou somente me referindo ao contrato social de Rousseau, em que cada indivíduo se coloca à disposição da suprema direção da vontade geral.

Entendo como cidadania a compreensão, a aceitação e o respeito às regras e leis existentes, tanto na sua concepção quanto na sua aplicação e seus limites. O cidadão tem que entender o que lhe é permitido, e o que está além e aquém de seu alcance. Assim, a noção de permissão não diz respeito ao que é simplesmente autorizado por lei ou decreto, mas ao que socialmente é permitido dentro das normas do civismo social.

Assim, o indivíduo, ao receber determinado cargo ou estatuto social, encontra-se imbuído de deveres e direitos. O indivíduo cidadão, ao se deparar com os mesmos deveres e direitos, entende, aceita e respeita os limites impostos pela própria natureza aos direitos e às responsabilidades a ele confiados, e tende a agir com civismo e transparência.

Agora, o indivíduo que se aproveita dos direitos vinculados ao cargo ou estatuto que lhe é atribuído, embora tenha plena consciência de que, por motivos outros que não os de puro direito, se encontra fatualmente aquém ou além desses direitos, desconhece as regras básicas de civismo e transparência.

Assim, não basta implantar, por lei ou regras corporativas, o direito a verbas tais como ajuda de custo, de viagem ou de moradia, para que esses valores sejam intrinsecamente ligados ao cargo. É ainda preciso que o titular do cargo esteja em condições fatuais ou financeiras de pleitear o benefício desse direito.


Da mesma forma, não basta constatar que uma instituição nunca coibiu a contratação de familiares para que isso crie um direito à absolvição implícita dos atos cometidos, como se fossem atos normais de exercício do poder.

Quem está encarregado de poder representativo e dos direitos vinculados a esse poder e faz conscientemente uso impróprio deles, ainda que dentro de um âmbito legal, não se comporta de forma ética. Ao se prevalecer dessa legalidade para erradicar qualquer questionamento quanto à utilização dos direitos e regalias vinculados à sua função, o indivíduo deturpa a noção de legitimidade, desconhece e até despreza seu dever e papel de cidadão.

Ao comportar-se dessa forma, acaba por se tornar culpado de falsidade cívica e anula o próprio princípio de transparência que deve prevalecer para o fortalecimento das instituições democráticas.

sábado, 30 de maio de 2009

A divina comédia - Os monstros, os sádicos e os feirantes

Um carro descontrolado anda de ré, causando pânico em ruas de uma cidade e atropelando pedestres. Nesse carro se encontra um homem com o rosto escondido por uma máscara, as mãos atadas, a boca vedada por uma fita. A tensão aumenta à medida que o carro vai causando mais estragos e que o homem tenta se soltar, sem sucesso.

Os participantes de uma espécie de prova devem percorrer as ruas de uma cidade com as mãos atadas e os olhos vedados, e tentam cegamente escapar de obstáculos (postes, árvores, carros, etc.). Os perdedores (os que caírem ao bater nesses obstáculos) são impiedosamente filmados pelos organizadores do evento por meio de aparelhos celulares.

Uma mulher tenta impedir que seu namorado a deixe. Como suas palavras não bastam, ela o empurra escada abaixo. Depois, quebra a perna dele com um taco de golfe e o joga no chão, na cadeira de rodas em que ele está amarrado. No final, como ele tenta de novo escapar, ela o persegue com um machado.

Estas cenas arrepiantes não são fragmentos de algum pesadelo que eu tivesse tido, mas resumos de videoclipes de artistas tão conceituados quanto Depeche Mode, Pink ou Prodigy. São idênticos na essência, ao mostrar o lado mais sádico do ser humano. Entretanto, não creio que o objetivo desses vídeos seja levar os espectadores a refletirem sobre os meios e os fins do comportamento dos homens. Trata-se apenas de ilustrar músicas com imagens suficientemente “diferentes” para que elas possam se destacar no jorro permanente e estrondoso de informações que a mídia, principalmente a televisão, proporciona.

E não há dúvida nenhuma de que, para os marqueteiros das gravadoras, os artistas e também os profissionais das mídias que as divulgam, estas imagens têm potencial comercial incontestável por se adequarem ao gosto do público atual, motivo pelo qual este tipo de narração é vinculado a artistas de fama e sucesso internacional.

Não pretendo erguer o estandarte do puritanismo ou do moralismo para condenar essas imagens e sua divulgação, mas há que se perguntar se esta forma de representação da violência (e, intrinsecamente, nossa aceitação passiva desta representação) não tem algo de bastante assustador.

A meu ver, estas imagens são infinitamente mais chocantes do que as de filmes maciçamente reprisados pelos canais de TV paga, repletos de vampiros sanguinários, mortos-vivos famintos, sobreviventes mutantes enlouquecidos e outras espécies de monstros peludos, dentuços e selvagens.

Simplesmente pelo fato de estes filmes não terem a mínima camada de verossimilhança, mantém-se certa distância entre o espectador e as cenas mostradas, dentro de um processo ilusório em que o susto constitui um elemento de diversão.

No caso desses clipes, este distanciamento não existe mais, e isso torna o que vemos profundamente chocante. Deixamos o universo dos monstros para alcançar o dos sádicos. E a cada sádico corresponde um masoquista, desta vez o espectador que se deixar fisgar por essas imagens.

E os feirantes lucram muito e cada vez mais com esse tipo de produto, sem que haja a mínima preocupação quanto às consequências das informações difundidas. Assim, se não bastassem clipes no gênero dos citados, a programação de certos canais de TV a cabo apresenta no prime time (vulgo horário nobre – quanta ironia!) filmes tão assustadores quanto Jogos mortais ou O albergue, que são meramente filmes explícitos de torturas físicas e morais.

E se os monstros fazem parte do imaginário coletivo porque remetem a lendas e contos que, sob diferentes formas, existem em todas as culturas, os sádicos fazem parte de nosso cotidiano, em que, diretamente ou indiretamente, sofremos ou acompanhamos pela mídia cenas de violência moral e física, e enfrentamos medos e frustrações.

Porém, não é por meio da “estetização” da violência sádica que a subjugaremos. Pelo contrário, temo que inconscientemente tenhamos alcançado o patamar da banalização do sadismo, ao torná-lo objeto de recreio.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

A divina comédia - Da efemeridade dos fatos

Ao entrevistar Caetano Veloso no último dia 15, para o lançamento de seu novo CD, Zii e Zie, Luiz Fernando Vianna, da Folha de S.Paulo, perguntou se a música “A base de Guantánamo”, incluída nesse disco, não arriscava à caduquice diante da decisão de Obama de desmontar a base e reduzir as restrições políticas e econômicas em relação a Cuba: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u550845.shtml.

O cantor respondeu esclarecidamente: “A minha indignação não envelheceu, não pode nunca envelhecer. A canção não é uma noticia de jornal”...

A questão do obsoletismo da temática abordada por Veloso nessa canção e a resposta por ele dada à pergunta do jornalista levantam uma série de reflexões que, de certa forma, são intrinsecamente ligadas: 1) a natureza efêmera dos fatos do ponto de vista jornalístico e a consequente relativização de seu impacto a longo prazo; e 2) o esquecimento desses fatos e a negação de seu papel histórico e social como resultado dessa relativização.


É inegável que a proposta de Caetano Veloso vai além de uma simples denúncia do sistema carcerário de Guantánamo e das chocantes cenas de tortura e humilhação de prisioneiros políticos amplamente midiatizadas pela imprensa internacional durante o governo Bush. É também incontestável que o cantor não se limita a assinalar o simbolismo da violação dos direitos humanos pelos EUA em território cubano. Trata-se da manifestação do artista diante da contradição política de um sistema democrático que se veste da imagem de respeitoso e ardente defensor de valores vinculados aos direitos humanos, mas que utiliza as formas mais desprezíveis de desrespeito aos mesmos direitos humanos como manifestação de sua hegemonia.

Ora, o cantor não precisou fazer um discurso de sociologia política para expressar sua indignação. Pelo contrário, resumiu magnificamente sua reflexão em uma simples frase: “O fato dos americanos desrespeitarem os direitos humanos em solo cubano é por demais forte simbolicamente para eu não me abalar”, que ele repete ao longo da música como um leitmotiv. Porém, a relativização da letra de Veloso ao simples nível fatual constitui uma forma redutora de analisar o pensamento do autor.

Ao identificá-la como mera narração de um fato, corre-se o risco de limitar sua importância à sua pertinência jornalística, que, por natureza, é passageira, e implicitamente reduzir seu impacto a esse reduto de pertinência.

Assim, há uma negação implícita de toda dimensão maior (social, política ou simbólica) que a manifestação do artista possa ter, que a despe de seu brilho e de sua profundeza. Torná-la fatual faz com que ela verta também para o eventual, o corriqueiro, o fútil, o esquecível.

E, por extensão, existe o perigo latente de abrir uma brecha para sugerir a possível caduquice de toda obra, que, ao se referir a acontecimentos de determinada época ou situação, limitaria sua pertinência à duração dos eventos narrados. Então, por que não qualificar de caduca a música “Vai passar”, de Chico Buarque, já que decorreram mais de vinte anos desde o movimento “Diretas já” e o fim da ditadura militar? E para que ler o livro Arquipélago Gulag, de Alexandre Soljenítsin, se não existe mais União Soviética nem stalinismo?

Dessa forma, a limitação da compreensão do pensamento ao fatual logo se torna a justificação implícita do esquecimento coletivo que faz com que as novas gerações não saibam medir a importância sociocultural de inúmeros acontecimentos por falta de referencial histórico que lhes fale sobre esses acontecimentos.

O clipe ao vivo da música “A base de Guantánamo” pode ser visto no seguinte endereço: http://www.youtube.com/watch?v=rXJQTGix-gc; Caetano Veloso comenta a música no próprio blog http://www.obraemprogresso.com.br/2008/06/19/caetano-veloso-comenta-a-musica-base-de-guantanamo/

segunda-feira, 13 de abril de 2009

A divina comédia - A sina do ensino



Foi com muito interesse que li, na Folha de SP de 08 de abril, o artigo de Marcelo Coelho sobre o filme Entre os muros da escola, de Laurent Cantet. http://marcelocoelho.folha.blog.uol.com.br/ Esse filme, que conquistou a Palma de Ouro em Cannes em 2008 e fez muito sucesso na França, seu país de origem, expõe sem nenhum disfarce a conturbada relação entre um professor e seus alunos em uma classe de um colégio público do 20º arrondissement (distrito) de Paris. Os conflitos são ainda mais exacerbados porque a classe é multirracial, composta por alunos de diferentes etnias, culturas e religiões (árabes, africanos, antilhanos, asiáticos, além de europeus).

Entretanto, se o sociólogo e jornalista reconhece que “uma política centrada nas ‘diferenças’, nas ‘identidades’ sem dúvida terminaria fragmentando demais a sociedade”, constata também “uma falta assustadora de flexibilidade e de afeto” que “destrói por dentro aquele sistema educacional organizadíssimo – e cego para as necessidades de cada ser humano, aluno ou professor”.

A meu ver, a análise de Coelho não deixa de ser pertinente, embora não contemple todos os fatos históricos e culturais que levam o sistema educacional francês ao colapso apresentado no filme.

É imprescindível lembrar que o ensino fundamental francês é enraizado nos princípios de um sistema educacional laico elaborado no fim do século 19. De fato, vigora até hoje a idéia segundo a qual a escola deve ser “gratuita, laica e obrigatória”, defendida por Jules Ferry, ministro da Educação e presidente do Conselho da Terceira República da França entre 1879 e 1885. Além disso, a “instrução” (e não a “escolarização”) tornou-se obrigatória. Isto é, independentemente do lugar em que estiverem estudando, todas as crianças deverão obrigatoriamente passar pelo funil de um ensinamento padronizado de normas e matérias que incluem, entre outras, a instrução cívica e moral.


No filme de Cantet, podemos perceber o quanto essas regras de padronização do sistema educacional continuam totalmente aplicadas hoje. Assim, o professor parece incapaz de fugir dos moldes e limites do programa educacional obrigatório definido pelo Ministério da Educação, e tenta “ensinar” a poesia de Rimbaud a alunos que mal conseguem se expressar em um francês básico se este não for temperado por gírias e expressões que servem como parâmetros de identificação tribal (ou seja, de alcance ainda menor do que se fossem expressões étnicas) e são totalmente desprovidas da possibilidade de comunicação e/ou intercâmbio com quem não for membro da tribo.

(elenco do filme Entre os muros da escola)

Por outro lado, e como o destacou judiciosamente Coelho, quando se percebe um começo de comunicação, ou seja, quando “uma pequena luz brilha nos olhos do aluno indolente”, mesmo que hesitante, ela é imediatamente apagada pela retórica intragável do sistema educacional e das ferramentas socioeducativas de que se serve o professor. O despertar do interesse nunca será visto ou reconhecido como o primeiro sopro de criatividade ou o primeiro passo de um crescimento individual, mas deverá imediatamente atender à cobrança comportamental do estudante para se tornar bom aluno, isto é, aquele que absorve as informações recebidas – e nelas se espelha – no intuito de apresentar resultados satisfatórios dentro dos critérios acadêmicos de avaliação de desempenho. Esse conceito é invariavelmente destinado a fracassar.Contudo, há de se perguntar se o fracasso do sistema educacional retratado pelo filme é intrinsecamente vinculado ao meio socioeconômico em que se ministra o ensino, ou se podemos generalizar esse insucesso ao sistema como um todo.

É incontestável que os maiores conflitos registrados no sistema educacional francês acontecem principalmente em instituições de ensino que atendem meios socialmente críticos ou se situam em regiões economicamente desfavorecidas. Outros cineastas antes de Cantet narraram as dificuldades e os conflitos vividos por professores e alunos, como, por exemplo, Bertrand Tavernier em Quando tudo começa (1999). Por sua vez, o filme de Cantet mostra de forma clara que a impossibilidade de comunicação que existe entre professor e alunos também é flagrante entre os próprios alunos, e atinge o núcleo familiar desses jovens. Aí a incomunicabilidade se torna um fator agravante porque generalizado, que transborda os muros da escola para atingir a sociedade como um todo. Percebemos muito bem esse problema na cena em que a mãe de um aluno, africana, convocada a comparecer perante o conselho de disciplina da escola que vai decidir sobre a possível expulsão de seu filho, precisa do auxilio desse mesmo filho (ou seja, do acusado) para entender o que lhe está sendo dito e perguntado, pelo simples motivo de que ela não fala uma só palavra de francês (e, por extensão, não entende o que está fazendo nessa reunião, nem a importância sociossimbólica desse conselho dentro da estrutura educacional francesa).


Agora, ao assistirmos ao filme A bela Junie (2008) de Christophe Honoré, não percebemos os mesmos conflitos. Não somente porque o roteiro não trata desse assunto, mas porque a história se passa em um colégio de um dos arrondissements mais ricos da Paris, cujos alunos pertencem todos a famílias de classe A ou B e não parecem ter problema de identificação com os programas de ensino dessa escola, em que são até ministradas aulas de italiano e organizadas viagens culturais internacionais. Dessa forma, mesmo que o filme retrate crises pessoais e existenciais, de modo algum se percebe, entre alunos e professores, qualquer zona de conflito que se fundamente em uma incompreensão das matérias ensinadas ou que seja resultado da impossibilidade de comunicação entre os vários grupos distintos e constitutivos do núcleo escolar em que se desenrola a trama.


Percebemos assim, em outras palavras, que a adequação do sistema educacional às aspirações e metas de determinados grupos socioeconômicos (e, consequentemente, culturais) depende da identificação desses grupos com o formato e o conteúdo do ensino.

Então, a escola que não for dinâmica, flexível e progressista corre o risco de não ser a matriz que servirá para moldar as futuras gerações às necessidades evolutivas da sociedade. Pois a França, por ter-se transformado em uma sociedade multirracial (com a migração em massa de diferentes etnias devido ao fim do colonialismo nos países da África e também em razão dos fatores socioeconômicos da Europa oriental e mais recentemente da Ásia), deve continuar a adequar progressivamente seu sistema educacional para responder às mudanças geradas por essa evolução.

De outro modo, a escola que se tornar uma simples incubadora, cuja função for meramente assegurar a transmissão inabalável, controlada e predeterminada de estigmas socioculturais de identificação de determinado grupo como se fosse uma preciosa herança, acabará por fracassar quando se deparar com algo (ou alguém) fora dos padrões. Consequentemente, quem não pertencer a esse grupo deverá adaptar-se, a todo custo, ou será descartado, porque o maquinário atende padrões determinados pelo grupo dominante.

Dessa maneira, entendemos melhor a origem dos conflitos retratados pelo filme de Cantet, principalmente no que diz respeito à impossibilidade de o professor (e de todo o sistema escolar, nele representado) se comunicar com alunos que são nada menos que os componentes da futura sociedade francesa.

Por outro lado, percebemos no filme o quanto esses componentes da futura sociedade também são contraditórios, fragmentados e geradores de conflitos. E podemos vislumbrar objetivamente os motivos que levam o sistema educacional a não ser tão flexível e evolutivo, como se, pela rigidez que demonstra, fosse o guardião simbólico da coesão nacional.

Portanto, diante da dificuldade de reversão desse quadro ou de soluções que emanem do sistema educacional em si, outras saídas tem sido tentadas. Como acontece de forma cada vez mais corrente não somente na França mas no nível mundial, soluções diferenciadas de educação têm sido encontradas em estruturas nem estatais nem acadêmicas (como associações, ONGs, etc.) que oferecem formas alternativas, flexíveis e poligonais de ensino, mais adequadas às demandas da sociedade plural.

quarta-feira, 25 de março de 2009

A divina comédia - Ignorantus, ignoranta, ignorantum!


(cena de O doente imaginário de Molière)

Ser ou não ser antenado? Eterno dilema. Estar por dentro do babado, do hype. Grande preocupação para quem busca espelhar-se em reflexos alheios, em uma vã procura pela própria identidade.

Frequentemente, deparo-me com matérias, comentários, resenhas, críticas de pessoas que se pretendem antenadas e que usam isso como se fosse sinônimo de certo estatuto. Como se o fato de ter ouvido falar, ter visto, ter lido fosse uma alavanca social, desvinculada de qualquer apreciação do valor do conteúdo. Como se o conhecimento se medisse por volume, tamanho, e não qualidade. Como se a informação fosse uma comida pronta vendida por quilo.

De fato, há de se reconhecer que os novos meios de comunicação e principalmente a internet, ao acelerar e ampliar a propagação das notícias, são ferramentas válidas e essenciais para que a informação atinja um número cada vez maior de pessoas.

Entretanto, estamos de novo falando de velocidade, tamanho, números, e não de qualidade. Os blogs (entre os quais este aqui) são outra fonte de comunicação, porém nem sempre bem utilizada seja por seus criadores ou seus seguidores.

É insuperável o fato de que, em uma época em que a pressa prima sobre a paciência e a falta de tempo vem constantemente abocanhar pedacinhos de nossa predisposição para o ócio, deparamo-nos com uma emergência informativa que nem sempre sabemos enfrentar, organizar ou assimilar.

Mas como essa emergência se tornou a pulsação que parece nos mover, nos levar adiante, acatamos a tudo e qualquer coisa para não parecermos incultos ou defasados. Há uma síndrome de pânico, um temor de parecer ou ser dedado como ignaro.

Ignorantus, ignoranta, ignorantum!, exclama Toinette em referência à hipocondria desatinada de Argan no Doente imaginário de Molière. Vemos, nessa ironia, que o pavor da ignorância não vem de hoje, sempre fez parte dos medos íntimos do homem, sempre foi motivo de desprezo, zombaria e rejeição social. Todavia, tornou-se certamente ainda mais relevante à medida que a cobrança do conhecimento veio se fortalecendo junto à aparição de novos meios de divulgação da informação, cada vez mais velozes, poderosos e eficientes.

E há realmente que louvar essas novas tecnologias e reconhecer que são até requintes cujos recursos mal sabemos utilizar. Há também que exaltar os tempos atuais no que oferecem em termos de informação, conhecimento, compartilhamento, formas diversificadas e ricas de expressão.

Mas ao mesmo tempo devemos nos redimensionar diante da imensidão informativa, nos situar, e reconhecer nosso próprio limite. Não de maneira submissa, mas de forma justa e desprendida. Ao dimensionarmos nossos limites, ao nos enxergarmos como seres que têm fim, podemos finalmente aprender a respeitar o incomensurável.

E ao respeitar o que é infinito, conseguiremos redirecionar nossa busca da informação, primando pela qualidade e pelo aprofundamento no que nos interessa ou nos dá prazer, em vez de engolir avidamente, de uma só bocada, iguarias ou dejetos, com um frenesi cego e insaciável, em nome de um suposto estatuto, de um reconhecimento social ou uma identificação tribal.

quarta-feira, 11 de março de 2009

A divina comédia - Yes, we have no bananas!


O Brasil é um dos países mais rigorosos no que diz respeito às leis trabalhistas. Mas este rigor, mesmo que pareça ser a última muralha erguida na defesa dos direitos dos trabalhadores, na verdade também é fruto de um atraso legislativo que faz com que as regras e normas não estejam em sintonia com a realidade do mercado atual.

Uma das maiores críticas às regras impostas pela C.L.T. diz respeito à execução e computação das horas extras. Obviamente, não pretendo criticar o fato do legislador querer normalizar as condições de execução do trabalho além das horas normais de expediente, mas há de convir que as limitações impostas pela Consolidação das Leis do Trabalho são frequentemente obsoletas diante da realidade mercantil.

Outrossim, vem à tona a questão da autonomia da vontade das partes (empregador, empregado), o caráter sinalagmático do contrato, o equilíbrio entre as partes, etc.; Esses assuntos poderiam ser (e são) tema de inúmeras matérias.

Pois bem, o Senado brasileiro acabou de resolver esta espinhosa questão ao pagar cerca de R$ 6,2 milhões em horas extras para aproximadamente 3.800 funcionários em janeiro deste ano, embora neste mesmo mês a casa estivesse em recesso e não houve sessões, nem atividade parlamentar.

E ninguém nas instâncias mais importantes desta digna Casa parece saber exatamente o que aconteceu, como explicar este fato e o que fazer.

Ou seja, a C.L.T, suas qualidades e seus defeitos acabaram de ser varridos para baixo do tapete, mandados para o ralo pela mais importante instituição constitucional brasileira, sem mais nem menos.

Diante desta situação, vejo apenas 3 alternativas:

1) Trata-se de um cala-boca para todos os catedráticos perdidos em debates doutrinais sobre a evolução do direito, para todos os juízes trabalhistas que cotidianamente têm de conduzir a orquestração dissonante de suas varas sobrecarregadas.

2) Trata-se (também e sobretudo) de uma provocação a todos os funcionários que estão sentindo na pele os efeitos da crise, e aos 4.200 demitidos da Embraer que brigam na justiça para tentar reaver seu emprego.

3) Ou se trata simplesmente de mais um rebolado tropicalista dos eleitos do povo, mais um evento dentro das comemoração do centenário do nascimento de Carmen Miranda. Algo repentinamente comentado e logo esquecido num país em que a memória se apaga à medida que se forma.