sábado, 30 de maio de 2009

A divina comédia - Os monstros, os sádicos e os feirantes

Um carro descontrolado anda de ré, causando pânico em ruas de uma cidade e atropelando pedestres. Nesse carro se encontra um homem com o rosto escondido por uma máscara, as mãos atadas, a boca vedada por uma fita. A tensão aumenta à medida que o carro vai causando mais estragos e que o homem tenta se soltar, sem sucesso.

Os participantes de uma espécie de prova devem percorrer as ruas de uma cidade com as mãos atadas e os olhos vedados, e tentam cegamente escapar de obstáculos (postes, árvores, carros, etc.). Os perdedores (os que caírem ao bater nesses obstáculos) são impiedosamente filmados pelos organizadores do evento por meio de aparelhos celulares.

Uma mulher tenta impedir que seu namorado a deixe. Como suas palavras não bastam, ela o empurra escada abaixo. Depois, quebra a perna dele com um taco de golfe e o joga no chão, na cadeira de rodas em que ele está amarrado. No final, como ele tenta de novo escapar, ela o persegue com um machado.

Estas cenas arrepiantes não são fragmentos de algum pesadelo que eu tivesse tido, mas resumos de videoclipes de artistas tão conceituados quanto Depeche Mode, Pink ou Prodigy. São idênticos na essência, ao mostrar o lado mais sádico do ser humano. Entretanto, não creio que o objetivo desses vídeos seja levar os espectadores a refletirem sobre os meios e os fins do comportamento dos homens. Trata-se apenas de ilustrar músicas com imagens suficientemente “diferentes” para que elas possam se destacar no jorro permanente e estrondoso de informações que a mídia, principalmente a televisão, proporciona.

E não há dúvida nenhuma de que, para os marqueteiros das gravadoras, os artistas e também os profissionais das mídias que as divulgam, estas imagens têm potencial comercial incontestável por se adequarem ao gosto do público atual, motivo pelo qual este tipo de narração é vinculado a artistas de fama e sucesso internacional.

Não pretendo erguer o estandarte do puritanismo ou do moralismo para condenar essas imagens e sua divulgação, mas há que se perguntar se esta forma de representação da violência (e, intrinsecamente, nossa aceitação passiva desta representação) não tem algo de bastante assustador.

A meu ver, estas imagens são infinitamente mais chocantes do que as de filmes maciçamente reprisados pelos canais de TV paga, repletos de vampiros sanguinários, mortos-vivos famintos, sobreviventes mutantes enlouquecidos e outras espécies de monstros peludos, dentuços e selvagens.

Simplesmente pelo fato de estes filmes não terem a mínima camada de verossimilhança, mantém-se certa distância entre o espectador e as cenas mostradas, dentro de um processo ilusório em que o susto constitui um elemento de diversão.

No caso desses clipes, este distanciamento não existe mais, e isso torna o que vemos profundamente chocante. Deixamos o universo dos monstros para alcançar o dos sádicos. E a cada sádico corresponde um masoquista, desta vez o espectador que se deixar fisgar por essas imagens.

E os feirantes lucram muito e cada vez mais com esse tipo de produto, sem que haja a mínima preocupação quanto às consequências das informações difundidas. Assim, se não bastassem clipes no gênero dos citados, a programação de certos canais de TV a cabo apresenta no prime time (vulgo horário nobre – quanta ironia!) filmes tão assustadores quanto Jogos mortais ou O albergue, que são meramente filmes explícitos de torturas físicas e morais.

E se os monstros fazem parte do imaginário coletivo porque remetem a lendas e contos que, sob diferentes formas, existem em todas as culturas, os sádicos fazem parte de nosso cotidiano, em que, diretamente ou indiretamente, sofremos ou acompanhamos pela mídia cenas de violência moral e física, e enfrentamos medos e frustrações.

Porém, não é por meio da “estetização” da violência sádica que a subjugaremos. Pelo contrário, temo que inconscientemente tenhamos alcançado o patamar da banalização do sadismo, ao torná-lo objeto de recreio.

sábado, 23 de maio de 2009

Descalços no parque

Nem São Paulo da garoa, nem o cruzamento da Ipiranga com a avenida São João. Apenas uma deliciosa manhã de outono no Parque Ibirapuera.



Para os amantes de São Paulo, recomendo o site São Paulo Minha Cidade com apresentação dos bairros, fotografias e histórias de moradores da cidade: http://www.saopaulominhacidade.com.br/

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Marie Modiano – Outland

Em setembro de 2008 foi lançado o disco Outland da cantora Marie Modiano. Na época, eu estava na França e tive a oportunidade de escutá-lo. Embora eu tenha a lembrança de ter achado o disco agradável, devo reconhecer que não prestei atenção suficiente a esse trabalho. Tornei a ouvir o CD a semana passada, com certa curiosidade, como se fosse uma total descoberta. E foi mesmo!

Marie Modiano é cantora e atriz. Filha do escritor francês Patrick Modiano – um dos maiores autores franceses dos 30 últimos anos, infelizmente pouco publicado no Brasil –, ela começou sua carreira no teatro entre a França e a Inglaterra, após ter sido aluna da Royal Academy of Dramatic Art de Londres.

Em 2004, lançou seu primeiro disco, intitulado I´m Not a Rose, que lhe valeu boas resenhas na imprensa francesa, e o interesse de certo público cativo.

Outland confirma com toda evidência as impressões deixadas pelo primeiro trabalho. São 12 canções, cantadas em inglês, em que Marie Modiano cria personagens, conta pequenas histórias, em ambientes intimistas, com algumas referências literárias, que de certa forma se espelham no estilo e nos climas dos livros do pai.

Os arranjos de Peter von Poehl­, músico sueco que, entre outros, já trabalhou com Michel Houellebecq e Vincent Delerm, dão às canções um ambiente folk-indie, na linha de outros artistas nórdicos como Kings of Convenience ou ainda o islandês Bardi Johannsson, da banda Bang Gang. O uso de instrumentos acústicos, violões, piano, mas também de sopros e cordas – como na genial “Butterfly Girl” –, remete a trabalhos recentes, como o CD Seventh Tree de Goldfrapp. Por sua vez, a voz de Marie Modiano, com certo grave, cria um clima intimista, próximo do ouvinte, digno das melhores gravações de Marianne Faithfull.

Por isso, Outland, embora de 2008, acaba por se tornar uma das melhores descobertas que fiz até agora em 2009. Isso prova, mais uma vez, que não podemos dar ouvidos ao imediatismo ambiente, amplamente sustentado pelos meios de comunicação ou de divulgação, e que nos leva facilmente a crer que música é algo para conhecer, assimilar, julgar e cuspir assim que sair do forno do artista ou da gravadora.

Convido vocês a descobrirem o trabalho da Marie Modiano e notadamente o excelente clipe da canção “Spider’s Touch” no site dela: www.myspace.com/mariemodiano.

sexta-feira, 15 de maio de 2009

The times they are a-changin’


(projeto para a mediateca de Sendai no Japão)

Dando complemento ao texto Além da imaginação que postei neste blog no último dia 28 de abril, http://metreno.blogspot.com/2009/04/alem-da-imaginacao.html, meu amigo Milton Dutra Pereira me informou da participação de Michel Melot, curador-geral das Bibliotecas junto ao Ministério da Cultura da França, no Segundo Seminário Brasileiro do Livro e da História Editorial, que aconteceu no Rio de Janeiro nesta semana. http://www.livroehistoriaeditorial.pro.br/segundoseminario/index.php/pagina-inicial

Melot, autor de livros sobre a história da ilustração, as estampas e as bibliotecas, constata que, apesar da morte cada vez mais anunciada do livro físico, que seria substituído pelo e-book, nunca houve tantos projetos arquitetônicos relativos a bibliotecas públicas. Além das medidas e dos incentivos políticos e governamentais, Melot percebe que há uma verdadeira renovação do conceito de biblioteca, com a modernização dos equipamentos e a reformulação dos meios de pesquisa, que transformam estes lugares em mediatecas, ou seja, centros culturais, altamente frequentados por quem busca informação e cultura, além do simples empréstimo de livros.

Ele cita como exemplo deste paradoxo as doações feitas por Bill Gates, por meio da Fundação Bill & Melinda Gates, que, após ter doado US$ 20 milhões à biblioteca pública de Seattle em 1998, anunciou em 2008 um programa de implantação de melhoramento do sistema de internet nas bibliotecas de outros estados, para permitir um maior acesso do público aos acervos.

Dessa forma, o e-book não anunciaria o fim do livro de papel, mas seria apenas um dos componentes da grande mudança que nos espera em relação à nossa maneira de receber, assimilar e produzir a informação escrita. Nessa mudança, as mediatecas são de fato grandes centros de comunicação da cultura como um todo, ao facilitar sua visibilidade e seu compartilhamento.

Gostaria ainda de destacar a matéria da coluna Conecte do Jornal da Globo de 14 de maio, que, ao tratar deste assunto, privilegia as novas tecnologias em termo de e-book.

http://g1.globo.com/jornaldaglobo/0,,MUL1126913-16021,00-NA+ERA+DA+TECNOLOGIA+OS+LIVROS+SAO+ELETRONICOS.html

Em todo caso, vejo que estamos diante de um processo irreversível e que nosso desafio não é nada mais (porém, nada menos também) que testar nossa capacidade de adaptação às formas novas de comunicação e, portanto, de compreensão da informação sem que haja a necessidade moldá-la em determinado formato ou suporte.


Assim, achei interessante a declaração de Nando Reis, na edição nº 32 da revista Rolling Stone, que, ao deplorar a diminuição das vendas de discos, disse: “Talvez não tenha tanta gente interessada em discos inteiros. Isto, sim, acho um empobrecimento. A construção de meu esqueleto, meu gosto, minha vida, foi através de álbuns”.


Aí, percebemos claramente o quanto nossa construção cultural (e emocional) depende muito do formato sob o qual recebemos a informação. É incontestável que Nando Reis viveu a grande época dos discos de vinil e principalmente dos álbuns conceituais. Entretanto, não podemos esquecer que o formato de disco “long play” é uma criação puramente mercadológica, resultado do desenvolvimento tecnológico decorrente da invenção de Thomas Edison.


Antigamente, as “canções” eram conhecidas do grande público graças a cantores de rua, a tocadores de realejo, que frequentemente vendiam também a partitura ou a letra. Obras conceituais cantadas ou de longa duração eram óperas e peças de música erudita em geral.

Por outro lado, sem a criação do LP, o que teria sido de obras tão marcantes quanto Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band dos Beatles, Dark Side of the Moon do Pink Floyd ou ainda Thriller de Michael Jackson? E como poderíamos celebrar este ano os 50 anos de Kind of Blue de Miles Davis? São perguntas essenciais porque dizem respeito à nossa construção cultural, nossa percepção emocional, nosso universo sensorial.


E já que os tempos estão mudando, nada melhor para concluir este artigo do que anunciar o lançamento do novo disco de Bob Dylan, Together Through Life. Achei o disco bem interessante, apesar da voz cada vez mais desgastada do artista. Quem estiver interessado poderá adquirir o disco em vários formatos, CD, CD DeLuxe, LP, LP duplo com CD, CD com DVD, etc. Prova de que estamos ainda longe de nos entregar inteiramente à imaterialidade das coisas!

terça-feira, 12 de maio de 2009

Somos todos taxonomistas!


A revista Bravo! publicou no fim de 2008 um número especial sobre as 100 obras essenciais da música erudita que só agora descobri e me apressei em comprar, embora eu não me considere, longe disso, especialista ou mesmo amante assíduo dessa música. Respeito e gosto da música erudita, mas devo reconhecer que não escuto com muita frequência este gênero musical, e prefiro dedicar meus lazeres “auditivos” à descoberta de obras de jazz, rock, chanson française ou ainda MPB. www.revistabravo.com.br

Então, o que me levou a comprar essa revista? Acredito que nada mais do que uma pulsão irrefreável, uma “curiosidade taxonômica” vinculada à descoberta da classificação hierárquica estabelecida por uma publicação conceituada, de importância cultural unanimemente reconhecida.

Bravo! expõe claramente a finalidade da classificação na capa da revista ao declarar que se trata do “ranking das melhores composições da história em todos os gêneros...”. Contudo, há de se notar certa relativização dessa pretensão na carta do editor, Almir de Freitas, em que ele reconhece que o resultado é “uma hierarquização de obras, compositores e intérpretes que, no conjunto dos textos, conta a história dessa arte”. Então, não se trata mais de destacar o melhor, mas o essencial, no sentido do lugar que a obra ocupa na evolução histórica da música erudita. A pesquisa da Bravo! cita as seguintes fontes:
www.bbc.co.uk/radio3/discoveringmusic e www.keepingscore.org, além de inúmeras referenciais bibliográficas.

De certa forma, sinto certo antagonismo entre a análise da essencialidade histórica, que a meu ver deve ser meramente empírica, e a análise da qualidade (‘as melhores composições’) mencionada na capa e que é subjetiva. E sendo assim, por que não ter apresentado essas obras essenciais dentro de um fluxo cronológico e não segundo uma classificação que coloca em último lugar (n.100) a Missa de Notre Dame, obra essencial da Idade Média e, de certa forma, ponto de origem da análise histórica desse gênero musical, e cujo autor, Guillaume de Machaut, “foi precursor da música renascentista e revolucionou a escrita da música sacra ocidental”, como lembra a revista?

Devo reconhecer que, apesar de minha imperícia no assunto tratado, não posso conter minhas reações, críticas, aprovações e frustrações em relação à classificação proposta, tanto no que diz respeito à metodologia escolhida como à ausência de compositores e/ou obras que, a meu ver, têm sua importância histórica. Assim, como omitir Camille Saint-Saëns – que, embora considerado conservador, influenciou compositores como Darius Milhaud (outro esquecido), que por sua vez influenciou muitos artistas de jazz – ou Henry Purcell – compositor predominantemente barroco, mas cuja obra Dido & Enéias é a primeira ópera inglesa. E questiono também (quanta audácia!) a escolha dos Dozes estudos para violão de Heitor Villa-Lobos como única obra citada deste compositor e não um dos seus magníficos Choros.

Todavia, ao reagir dessa forma, não faço outra coisa a não ser confrontar minha subjetividade com a dos autores da lista publicada pela Bravo! Aí não nos encontramos mais na questão do mérito da escolha das obras citadas pela revista ou por mim, mas entramos na questão da necessidade primeira, que é o desejo natural do ser de querer compreender, assimilar e julgar (com seu afeto) as coisas que o rodeiam pela classificação que lhes dá e, consequentemente, de fazer dessa classificação um espelho de si próprio.

Há milhares de publicações sobre esse assunto, e não pretendo, numa postagem de blog, estender-me sobre os trabalhos acadêmicos relativos às classificações que analisam desde as premissas enciclopédicas de Diderot até autores contemporâneos. Entretanto, gostaria de destacar o interessante estudo de Olga Pombo, professora auxiliar da Universidade de Lisboa, investigadora responsável pelo projeto Enciclopédia e Hipertexto, intitulado “Da classificação dos seres à classificação dos saberes”,
http://www.educ.fc.ul.pt/docentes/opombo/investigacao/opombo-classificacao.pdf.

Nesse estudo, Olga Pombo, ao reconhecer a “radicalidade do problema da classificação, da sua inscrição no desejo – e na necessidade primordial – de compreender e ordenar a variedade que nos rodeia”, procura, “no primeiro momento, delimitar o conceito de classificação”. No segundo momento, ela tenta definir “diferentes tipos de classificações mostrando como é possível identificar quatro grandes orientações: uma orientação ontológica (classificação dos seres), uma orientação gnosiológica (classificação das ciências), uma orientação biblioteconómica (classificação dos livros) e uma orientação informacional (classificação das informações)”. Por fim, ela considera que a “emergência de cada uma destas orientações seria correspondente a diferentes fases de desenvolvimento histórico do próprio problema da classificação”.


Recomendo também a leitura do livro A memória das coisas – Ensaios de literatura, cinema e artes plásticas de Maria Esther Maciel – Lamparina Editora (2004), em que a autora reúne ensaios nos quais discute o uso criativo dos sistemas de classificação por parte de escritores, cineastas e artistas contemporâneos, entre os quais Jorge Luis Borges, Peter Greenaway, Arthur Bispo de Rosário, George Perec e Carlos Drummond de Andrade.
http://www.letras.ufmg.br/esthermaciel/

Foi nesse livro que li a seguinte citação de Jose Luis Borges e que tomo a liberdade de reproduzir aqui, por ilustrar perfeitamente a temática do presente artigo: “Um homem se propõe a tarefa de desenhar o mundo. Ao longo dos anos, povoa o espaço com imagens de províncias, de reinos, de montanhas, de baías, de naus, de ilhas, de peixes, de moradas, de instrumentos, de astros, de cavalos e de pessoas. Pouco antes de morrer, descobre que esse paciente labirinto de linhas traça a imagem de seu próprio rosto”.

sexta-feira, 8 de maio de 2009

Era uma vez a revolução


(A demolição da Bastilha - estampa do século 18 - Museu Carnavalet - Paris)

Épocas de crise econômica, com seu rastro de consequências nefastas, entre as quais o desemprego, a redução do poder aquisitivo, a pobreza e inúmeras falências de empresas e bancos, sempre levam ao questionamento dos sistemas econômicos, políticos e sociais existentes e consequentemente ao ressurgimento de reflexões sobre o fundamento e a finalidade das revoluções.
Dessa forma, e mesmo que sem nexo direto entre si, não é de surpreender que dois textos tenham sido publicados a poucos dias de intervalo sobre o tema da revolução, ambos muito interessantes.

O psicanalista Contardo Calligaris acaba de publicar na Folha de SP de 7 de maio o ensaio Ahmadinejad e Foucault, em que, ao analisar a decisão de cancelamento da visita do presidente do Irã ao Brasil, questiona a análise positiva que Foucault fez da revolução iraniana e, intrinsecamente, nosso almejo, mesmo que inconsciente, de uma esperança coletiva vinculada a movimentos revolucionários [
http://contardocalligaris.blogspot.com/2009/05/ahmadinejad-e-foucault.html ].
Por sua vez, Serge Halimi, escritor e jornalista, ao constatar que “a crise do capitalismo enfraquece as oligarquias que estão no poder”, publicou no Monde Diplomatique de maio um artigo bem documentado e intitulado Éloge des révolutions, em que faz um apanhado das revoluções consideradas historicamente importantes ao analisar nossa atualidade e nossa apatia diante de fatos que poderiam levar a desejos revolucionários que mudassem as sociedades [
http://www.monde-diplomatique.fr/2009/05/HALIMI/17050 ].
Apesar de as análises serem bastante diferentes, há certamente um paralelo a fazer entre o ponto de vista do psicanalista e o do escritor.

Em primeiro lugar, Calligaris declara que não consegue “ponderar os problemas do mundo sem pensar no individual”, enquanto Halimi logo analisa a evolução histórica do pensamento revolucionário em que, após o apogeu dos Estados totalitários (União Soviética e China), as democracias, principalmente nos modelos anglo-saxões, recuperaram a idéia de mudança de sociedade para construir um modelo revolucionário mais político do que social, baseado na lei do mercado.

Apesar de terem focos diferentes, os dois autores referem-se ao Contrato social de Rousseau ao reconhecer que há inevitavelmente no ser humano um desejo de coletividade. “Algo [...] que nos permita renunciar por um tempo a nossas responsabilidades singulares”, segundo Calligaris, enquanto para Halimi os movimentos sociais são antes de tudo defensivos porque “pretendem restabelecer um contrato social que julgam desrespeitado pelos patrões, os latifundiários, os banqueiros, os políticos”.

O que diferencia Calligaris de Halimi, e justamente por causa disso os torna tão essencialmente ligados e interessantes no antagonismo, é a análise da violência que toma conta dos movimentos revolucionários e que leva à eterna pergunta de saber se os meios justificam o fim.

Calligaris, ao citar a Revolução Iraniana, constata que “a ‘vontade geral’ se constrói sempre sobre os cadáveres dos que não concordam”. Refere-se mais explicitamente à opressão em sociedades como, por exemplo, a dos talibãs no Afeganistão, em que há uma mulher que “no porão, ainda está esperando para saber a que horas será apedrejada”.

Halimi, ao reconhecer a violência dos movimentos revolucionários, replica – a quem se escandaliza com os massacres da Revolução Francesa ou Russa, ou dos oficiais do exército de Chang Kai-chek na Revolução Chinesa – que também não se pode ocultar a fome sofrida pelo povo francês durante o Antigo Regime enquanto havia bailes na corte, em Versalhes; o massacre de manifestantes pacifistas em São Petersburgo em janeiro de 1905 pelos soldados de Nicolau II; e os revolucionários chineses queimados vivos nas caldeiras de locomotivas em 1927.

Entretanto, não se trata de um impasse, porque esse antagonismo vem essencialmente de diferenças prismáticas, naturalmente decorrentes do ponto de visto de cada autor.

Calligaris, com o olhar de psicanalista, declara que “o legado irrenunciável da psicanálise é sobretudo a necessidade de pensar nas pessoas uma por uma, sem ilusões e entusiasmos coletivos”. Halimi considera que “para quem a despreza, o erro principal da revolução não é a violência, fenômeno tristemente banal na história, mas, algo que acontece muito raramente, a mudança radical da ordem preestabelecida que acontece por meio de uma guerra entre possuidores e proletários”.

Entretanto, não vejo na reflexão de Calligaris uma negação da necessidade do coletivo, da mesma forma que não há nos comentários de Halimi nenhum rastro de sublimação de massacres politicamente justificáveis. Ambos defendem pontos de vista válidos.

Sinto nesses textos a necessidade de resgatar algo profundo do ser que não se encontra em nenhum modelo de sociedade atual e cuja falta se faz ainda mais crítica diante da crise que está abalando as principais economias mundiais. Trata-se de uma identidade do ser que está cada vez mais apagada e que precisa brilhar de novo no modo individual como no coletivo. Daí a necessidade de repensar a sociedade com ela existe hoje.

Tempos de crise mundial são igualmente tempos de crise pessoal. Tomara que desses milhares de crises individuais nasça alguma mudança coletiva, uma revolução que resgate também o valor do indivíduo dentro da coletividade. E de preferência, sem violência...

terça-feira, 5 de maio de 2009

Coup de coeur ao Piano de Gogô

A música brasileira instrumental sempre se beneficiou de grandes compositores e grandes intérpretes. Há de se convir que poucas músicas no mundo são tão diversificadamente ricas e múltiplas em raízes e harmonias.

Embora raramente midiatizada, ela continua vivendo graças a nichos de artistas e produtores que lutam por meio de incentivos privados para poder gravar discos e contribuir à preservação da memória cultural do país. Essas iniciativas têm que ser louvadas, e o público tem papel essencial nessa proposta ao assistir aos shows e comprar os discos (ou downloads pagos).

Assim, recomendo vivamente o CD O piano de Gogô, com direção artística de Thiago Cury e lançado no selo Água Forte, que tive a felicidade de descobrir (e comprar por menos de R$ 15 na Livraria Cultura! http://www.livrariacultura.com.br/) há uns dias atrás.

Gogô, apelido de Hilton Jorge Valente, é pianista, arranjador e professor com mais de 50 anos de carreira. Além de clubes noturnos em São Paulo e Rio de Janeiro, atuou notadamente ao lado de Dick Farney, Lúcio Alves, Nana Caymmi, Maysa, Dóris Monteiro. Desde 1990, é professor no Instituto de Artes da Unicamp, onde desenvolve uma tese de doutorado sobre as harmonias na música popular brasileira.

O CD O piano de Gogô é joia rara, um disco para se ouvir com o coração. Os arranjos primorosos, que mesclam com ótimo gosto influências do jazz, da bossa nova e da música erudita, servem perfeitamente ao repertório escolhido com raro discernimento e em que se destacam compositores preciosos como Dorival Caymmi, João de Barro, Jacob do Bandolim, Johnny Alf e Guinga. Participações brilhantes de músicos e cantores – entre os quais Nailor Proveta (compositor e arranjador do belo “Choro e bossa” que introduz o disco), Zeca Assumpção, o próprio Guinga (autor da lindíssima “Noturna” com letra de Paulo Cesar Pinheiro), Alaíde Costa, Zé Luiz Mazziotti (em uma interpretação emocionante de “Choro pro Zé”, parceria de Guinga e Aldir Blanc) e o conjunto de cordas Ensemble SP – dão ainda mais brilho a esse magnífico trabalho.


Também disponível na rede uma entrevista de Gogô pelo programa Metrópolis da TV Cultura http://mais.uol.com.br/view/92db81ral8qx/metropolis--50-anos-de-carreira-do-pianista-gogo-0402336EC4995326?types=A

domingo, 3 de maio de 2009

Massa domingueira

Quem mora em São Paulo, mesmo que há pouco tempo, logo sabe que existe a tradição do prato de massa do domingo, influência da grande colônia italiana. Macarrão com frango assado... Nada melhor para juntar famílias e amigos à mesa.

Na minha terra (França), os domingos costumam ser mais dedicados a carnes refogadas ou ensopados, e as massas são substituídas por legumes.

O que nos une aos italianos é o gosto pelo bom vinho para alegrar a alma.

Mas minha vivência na terra da garoa me deu vontade de me atrever a preparar minha própria massa domingueira. Trata-se de uma variação da receita clássica de maccheroni all’arrabbiata. Receita clássica porque meu atrevimento não é tão grande que me permita criar do nada uma receita de massa “à italiana” sem mais nem menos, e variação porque esse mesmo atrevimento é suficiente para que eu queira dar um toque pessoal ao prato....

Em vez do frango, resolvi acompanhar este prato de deliciosas linguiças calabresas assadas na chapa. Enquanto assam, costumo regar um pouquinho as linguiças com o mesmo vinho que usei para o preparo do molho. Nada melhor!

INGREDIENTES (para 4 pessoas)

- 400 g de macarrão (penne ou rigatoni)
- 1,5 kg de tomates maduros
- 30 g de cogumelos morilles desidratados (na ausência de morilles, usar funghi porcini)
- 120 g de bacon fatiado em cubos grossos
- 2 cebolas médias picadas
- 3 dentes de alho picadinhos
- Queijo parmesão ralado
- Páprica
- 1 pimenta-malagueta picada (com sementes)
- 1,5 colher (sopa) de folhas de manjericão
- 1 colher (café) de alecrim
- 1 folha de louro
- 1 colher (chá) de salsa picada (para salpicar no final)
- Azeite de oliva
- Pimenta-do-reino
- Sal
- Vinho tinto (de preferência italiano)

PREPARO

Deixe os cogumelos na água fria o tempo suficiente para reidratá-los.

Mergulhe os tomates na água fervente para tirar a casca. Pique-os em cubinhos e retire as sementes.

Em uma frigideira com tampa (tipo wok), refogue os cubos de bacon para que fiquem ligeiramente dourados; reserve-os.

Após ter despejado a gordura de bacon da wok, refogue as cebolas, o alho e a pimenta malagueta junto com o louro no azeite, em fogo médio, até que comecem a suar.

Acrescente os tomates picados e deixe cozinhar em fogo baixo por mais 5 min, mexendo de vez em quando.

Pique miudinho metade das folhas de manjericão e junte-as ao preparo.

Retire os cogumelos da água, esprema-os para retirar o excesso de água e pique-os em pedacinhos; reserve a água.

Junte os cogumelos e deixe cozinhar por mais 10 min, mexendo de vez em quando.

Acrescente o bacon, dê uma mexida rápida e junte 1/3 da água de reidratação dos cogumelos. Deixe cozinhar por mais 5 min.

Acrescente o restante da água dos cogumelos, um cálice de vinho tinto, alecrim, sal, pimenta e páprica a gosto.

Deixe reduzir para que o molho engrosse e o álcool do vinho evapore.

Cozinhe a massa conforme as indicações do pacote (deixando-a al dente!).

Após coar a massa, junte-a ao molho. Acrescente as folhas restantes (inteiras) de manjericão e a salsa picada. Mexa devagar para que a massa incorpore bem o molho.

Sirva em seguida com o parmesão ralado.