sexta-feira, 18 de maio de 2012

Alegria, alegria



Donna Summer. “Donna se meurt”, como uma piada de mau gosto costumava chamá-la da França no fim dos anos 1970. Só que Donna morreu e a piada ficou ainda mais idiota. Donna se foi, repentina, num surpreendente susto, num último soluço de fim de noitada. E na hora que eu soube da notícia, caí num mar de lembranças, "down deep inside", numa apneia cerebral e emocional. Nas profundezas da nossa alma estão os fundamentos da nossa credulidade, da nossa inocência, a construção do nosso “ciente e inconsciente”, dos nossos idos e das nossas revoltas, das nossas libidos e reviravoltas. Na estranheza das nossas entranhas estão os mais volutuosos suspiros, os “Love to Love You, Baby”, osI Feel Love”, hipnóticos, cardiacamente tesudos, batimentos que de tão batidos ficaram impregnados no coletivo, na construção do “ciente e inconsciente” do mundo, numa pista de boate gigante, um gargantuesco baile, para sempre. Donna se foi, e lá se vão os anéis da minha adolescência (os dedos, guardo para as futuras artroses), o ouro da juventude, a descoberta do groove e do grude, as noites em claro, tentando acalmar o ímpeto do calor das ondas, batendo o leite até virar creme, com as “Bad Girls”, sussurrando nos meus ouvidos. “I Remember Yesterday”. O ano era 1977 ou 1978, o Zenith em Paris, show da Donna Summer. Eu tinha 14 ou 15 anos. Noites em claro; já. Noites cremosas... as primeiras. Para ver o show (proibido aos menores de 18 anos) levei a minha mãe... E Donna cantou, dançou e rebolou. E Donna não precisou de efeitos especiais, voicoder e tela LCD para garantir seu sucesso. Bastou uma ótima banda, um microfone e um biombo atrás do qual ela deve ter trocado de roupa umas 4 ou 5 vezes para a alegria do público e da minha puberdade. Logo depois comprei os LPs, Four Seasons of Love, o qual vinha com calendário com fotos da musa, que pus na porta do meu quarto; depois, Bad Girls e Live and More. Aí a música mudou e meu gosto também. Mas sempre nos lembramos do nosso primeiro amor. Da primeira vez que o coração e o corpo entraram num uníssono, num tremor que sempre será nosso “personal tsunami”. Cada um tem o seu. O meu foi Donna Summer. Mulher que, se não foi tropicalista, trouxe à minha vida muita alegria e que, para sempre, vou amar.                     

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Melting bote




Hoje comprei


Um pacote de bolachas


No supermercado


Hoje comprei


Um pacote de bolachas


Diferentes


Da mesma marca?


A de sempre


Porém de trigo integral


Hoje comprei


Saúde?


Ou engano?


Hoje comprei


Um pacote de bolachas


No super engano


Hoje comprei


Um pacote de bolachas


Diferentes


Da mesma raça?


A de sempre


Porém de sangue integral


Hoje comprei


ideologia


ou logro?


Hoje comprei


Um pacote de bolachas


Diferentes


Da mesma providência?


A de sempre


Porém de burrice integral


Fui enganado?


Não sei


Mas hoje comprei


Compulsivamente


Um pacote integral


De bolachas


Diferentes


Da marca de sempre


Porque quero ser integral


Ou integrado


Não sei


Mas comprei...



quarta-feira, 9 de maio de 2012

Yes, nós queremos brioche!


A confusão da galinhada do Atala na última virada cultural de São Paulo não deixa de ser a mais preocupante manifestação da maneira como uma elite política de São Paulo mostra que não superou os arquétipos da sociedade mais conservadora, no sentido mais monarquista do termo. Em resumo, a Virada Cultural de São Paulo este ano agregou à musica uma degustação de pratos de chefs servidos em bancas espalhadas pelo Minhocão, pelo preço módico de R$ 10,00 a R$ 15,00, entre os quais o superestrelado Alex Atala e sua famosa galinhada. Infelizmente, quem ficou horas esperando na fila da galinhada levou frango de goleiro e o Atala não deu as caras, incapacitado que teria ficado, apesar do seu DOM, de chegar até o lugar da comilança sem ser depenado. No dia seguinte da falsa micareta, o secretário da cultura da cidade de São Paulo, Carlos Augusto Calil, rebatando críticas, declarou que “A alta gastronomia nunca vai ser um evento de massa”, rejeitando a culpa do mico sobre a imprensa que teria dado importância demais ao acontecimento. Não pretendo aqui discutir o papel da imprensa nas sociedades democráticas.
Basta lembrar que a imprensa deve ter liberdade de expressão e o leitor liberdade de apreciação e de avaliação. Trata-se de uma questão de equilíbrio, precário certo, porém necessário. Mas, se por um lado, o fascismo aberto e descarado consiste em proibir a divulgação de opiniões e informações, por outro lado, o fascismo disfarçado de democracia (e, portanto, ainda pior) consiste em trocar a proibição pela crítica do uso da liberdade de opinião; isso não passa de um diabólico envenenamento da comunicação democrática por meio do amargo soro da dúvida sobre a objetividade (e, consequentemente, a deontologia profissional) de quem divulgou a informação. Mas, além dessas considerações que dizem respeito a uma profissão à qual não pertenço e que sabe muito bem se defender sem mim, mais assustador é o teor segregacionista da declaração de um secretário que da cultura parece só ter o título. Afinal, o que quer dizer “alta gastronomia” em relação à comida de rua?
Não podemos esquecer que os restaurantes da forma que os concebemos hoje provêm de um conceito que nasceu no século 19, enquanto a comida servida nas ruas sempre fez parte das mais intrínsecas formas de sociabilidade. Isso vale para todas as culturas desde que o mundo é mundo e o Brasil não escapa dessa característica, como lembrou tão bem a jornalista gastronômica Cristiana Couto em uma recente matéria do seu blog: http://sejabemvinho.blogfolha.uol.com.br/2012/04/18/como-era-a-comida-de-rua-ha-200-anos/
Mas, na nossa época em que o poder aquisitivo parece ser o único critério de avaliação do valor do individuo, em que a inteligência vem sendo esmagada pelo limite do cheque especial, em que as academias cuidam de todos os músculos menos do cérebro, talvez o secretário da cultura da cidade de São Paulo seja mais um “digno” representante dos tempos atuais. Tempos que não são mais racistas, mas em que o politicamente correto trocou a diferença de cor da pele pela diferença de cor do cartão de crédito. Assim, a segregação pelo paladar talvez seja o último requinte de um desdém muito maior, da rejeição que se tem em relação à boa parte da população, aquela que não deveria sair da copa, nem ter estação de metrô para chegar ao shopping Higienópolis, shopping que, aliás, fica bem perto do Minhocão onde desandou a popular galinhada, que, de repente, tornou-se referência da “alta gastronomia”.
Tudo isso não passa de um triste sarcasmo escancaradamente manifestado por quem transforma a comida de rua em “street food”, acreditando que assim, por meio dessa americanização, o bom e velho rango adquiriu uma (fake) legitimidade aristocrática. Pois bem, mas a história (e suas lendas) nos conta que em 1789, quando o povo faminto de Paris chegou às portas do castelo de Versalhes, a cerca de 20 km da capital, sem ter estação de metrô por perto, Maria-Antonieta teria respondido que quem estivesse com fome precisava comer “brioche”. Isso acabou lhe custando a cabeça. Algo a se meditar...



terça-feira, 8 de maio de 2012

O prazer do debate


 
O meu amigo Milton Dutra Pereira me mandou um e-mail muito instigante sobre Caetano Veloso e Chico Buarque, o qual cutucou meu prazer intelectual e provocou uma resposta. O Milton não tem blog, mas tem argúcia e sabe escrever, algo um tanto raro nos tempos atuais. E, como vejo o blog como uma maravilhosa ferramenta de troca e divulgação de ideais, resolvi publicar nossa correspondência, tenha o valor que tiver, tratando-se apenas de um manifesto existencial, no sentido de existirmos. Talvez apenas um intercâmbio de ideias na falta de ideais, mas mesmo assim algo valioso. Porque na época em que todos nós somos facebucados, em que podemos graduar nosso interesse em “like”, “comment” e “share”, é muito fácil brincarmos de convivência, numa grande rede confraternal regulada por aplicativos que nos controlam e que orgulhosamente colecionamos como se colecionam figurinhas de ídolos de futebol. E nessa rede nós nos espelhamos nas telas de alta definição, numa exibição narcisista, em que é preciso competir orgulhosamente exibindo telefones muito mais “smart” do que seus donos, numa vã corrida à procura da inteligência perdida. Pois bem, essa troca de e-mail, assim como esse “post” não entendem revelar nenhuma verdade em relação aos temas abordados, apenas lembrar que as ferramentas modernas são válidas desde que queiramos usá-las como jocosos despertadores mentais e não apenas como placebos de uma ânsia de nos mostramos “internetamente” vivos e sociáveis.


Milton:


TALENTO E INTUIÇÃO 

É estranho e ao mesmo tempo fascinante como em termos de música brasileira ainda se possa ser surpreendido por “verdades” que se supunha solidificadas e acomodadas de uma forma confortável, e que de repente ressurgem como “novidades” porque se mostram de um jeito como ainda não tínhamos visto. E é por se tratar de figurões desta música que o fato é tanto surpreendente quanto substantivo (relevante). Caetano e Chico são as figuras que motivam esta elucubração um tanto difusa que vou tentar clarear.

Em primeiro lugar, de toda a rica e prolífica geração surgida nos anos sessenta são hoje os dois que mantém mais ativa e constante a veia criativa e com qualidade à altura de sua obra anterior.

No caso de Caetano, numa visão –ainda que tardia – de seus dois últimos trabalhos (2006) e Zii e Zie (2009) fica claro que continuam vivas sua inconfundível inventividade e inquietação artística. Mas o que impressiona mesmo é a inovação e atualidade de sua música. Cercando-se de músicos competentes e modernos a partir do filho Moreno, mais Kassim e Pedro Sá, Caetano navega, camaleonicamente como é seu estilo, numa sonoridade capaz de envolver tanto seu público cativo quanto gerações bem mais jovens. O melhor exemplo disto é o que fazem, a banda e o cantor, com Incompatibilidade de Gênios de João Bosco, um samba com malemolência e veneno tipicamente brasileiros que teve, além da virtuosa gravação do autor, outra com Clementina de Jesus, simplesmente transcendental. Nessa versão “transmoderna”, pra usar um termo ao gosto do próprio cantor, com a preciosa contribuição da Banda Cê, o que se houve é um amálgama de samba sincopado e toques de balada mais a candente interpretação do mano Caetano. Um luxuoso prazer ainda que envolto numa capa de minimalista modernidade. 

Chico voltou à música no ano passado (2011) depois de longa ausência envolvido com sua, a esta altura, prestigiosa carreira literária. No álbum chamado simplesmente “Chico” ele mantém o que foram algumas marcas de sua música em composições suaves e delicadas. Nas letras o que à primeira vista pode parecer simples na verdade contem elaboradas e singulares ideias representadas em sua sempre rica e às vezes lúdica arquitetura de palavras.

Poesias e crônicas desfilam numa diversidade de estilos que pode ir de “Meu Querido Diário” uma espécie de versão atualizada do seu antigo “Cotidiano”, a “Se Eu Soubesse” que pode lembrar uma chanson française. Há variações que tendem a um tom mais reflexivo, mas sem atingirem um clima taciturno. 

Sem pretender criar nenhuma teoria localizo uma coincidência na experiência artística e de vida de ambos. De uma forma ou de outra estão ou estiveram ligados à palavra escrita.

Caetano, que ainda nos tempos de faculdade pretendeu ser crítico de cinema, anos atrás lançou um livro muito bem escrito e sobretudo honesto, “Verdade Tropical”, sobre os primeiros anos de sua carreira até partir para o exílio. Atualmente escreve uma coluna aos domingos no “O Globo” no seu melhor estilo instigante e polemista.

Chico há muitos anos se propõe uma alentada carreira literária e já afirmou que a literatura é muito mais intrínseca nele que a música que seria “apenas instintiva”. Como leitor de duas obras suas – “Budapeste” e “Leite Derramado” – me rendo absolutamente ao seu talento como autor. Sempre bem recebido pela crítica (mesmo com algumas contestações), é também um sucesso de vendas e editado em muitos países.

Minha pergunta é se o fato de exercerem o ofício cartesiano da escrita, de alguma forma, como equilíbrio, alimenta e estimula em suas respectivas personas, o lado mágico e intuitivo da música.

Eu:

Concordo plenamente com você em todos os pontos. É óbvio que existem diferenças fundamentais entre Caetano e Chico, tanto nas personalidades quanto na verve artística e criativa. No entanto, concordo quando você constata que são os últimos grandes representantes e criadores da música brasileira que nasceu nos anos 1960.

No que diz respeito a Caetano, o lado camaleão está onipresente em toda a carreira do cantor. Nesse sentido, já foi feito por críticos o paralelo entre Caetano e David Bowie. São artistas multifacetados que sempre souberam se inspirar nas mais recentes ondas e tendências para criar uma obra em evolução permanente. Contudo, é incontestável que, assim como Bowie, trata-se de um revestimento sonoro, em uma corrida contra o tempo e o fato de envelhecer, já que, se você ouvir e Zii e Zie para além dos arranjos, verá que a estrutura das composições de Caetano remete fundamentalmente às demais obras que ele escreveu desde o começo da carreira. A mesma coisa acontece com a obra do Bowie. Da mesma forma, a “transmodernidade” tão cara ao artista, ou o “transsamba”, que em si é uma desconstrução de formas clássicas de composição musical, é uma maneira atual de proceder a releituras, o que outros já fizeram antes dele, notadamente um dos seus mais caros mestres, João Gilberto. Não é à toa que “O homem velho” talvez seja a música mais pungente do CD , assim como “Never get old” foi do CD Reality de David Bowie. Acredito que grande parte da inquietação desses dois artistas seja profundamente autorreferencial e narcisista, sendo a busca permanente da criatividade um tipo de mecanismo, de artefato para dar vazão a essa inquietação sobre a própria finitude, como um “retrato de Dorian Gray”.

No caso de Chico, há incontestavelmente uma preocupação bem parecida, mas de forma mais reflexiva, como você diz, ou mais introvertida. Contudo, a inquietação permanece em uma sofisticação cada vez maior da palavra, em jogo de pistas em que as aparências enganam, os lugares e as épocas se confundem, numa mesma corrida desenfreada contra o tempo, cujo fim, como em Leite Derramado, tem como característica de ser tragicamente inelutável. Com o decorrer do tempo, a jocosidade do malandro e do amante das “mulheres de Atenas”, foi recuperada pela implacabilidade de nosso destino, algo que começou a se desenhar em “O velho Francisco” e que, no CD Chico, está mais turva, porém incontestavelmente presente nas entrelinhas das canções dedicadas ao amor, à solidão e à relação de Chico com Thaís Gulin, que, sem dúvida, constitui mais uma manifestação da corrida do artista contra o tempo, outro retrato de Dorian Gray. Como se o artista epicurista tivesse descoberto a tragédia grega. 

Será que Caetano e Chico são dois artistas wildianos? Quem sabe, essa seja a resposta à tua pergunta final...