Alguns acontecimentos recentes levam à reflexão sobre democracia e cidadania.
É incontestável que alguns países emergentes, entre os quais o Brasil desde o fim dos anos 1980, seguem um formidável processo de aprendizagem da cidadania, em que todos os membros da sociedade são convidados a ter voz ativa, não somente na hora de votar, mas também como guardiões permanentes do princípio de garantia do modelo constitucional democrático.
Este modelo político e societal tem por fundamento princípios imprescindíveis a todo Estado democrático, que são a transparência das instituições e o respeito às leis, além naturalmente de uma boa governança.
A aprendizagem do modelo democrático é em si um processo iniciático que leva progressivamente o aprendiz a conhecer e dominar as ferramentas que usa, no intuito de potencializar seu poder decisório de forma eficiente e produtiva.
Nesse processo iniciático, é incontestável que a mídia tem um papel altamente didático, ao denunciar sistematicamente fatos relevantes de entrave ao processo de transparência das instituições e de desrespeito às leis, sejam estes vinculados ou não a esquemas de corrupção política e/ou financeira.
Por outro lado, não há dúvida que o processo democrático esteja naturalmente vinculado ao aumento do poder aquisitivo, como já o destacou o constitucionalista Maurice Duverger.
A noção de poder aquisitivo pode ser vista de duas maneiras: por um lado, o aumento da renda individual do cidadão, e consequentemente, a melhoria de sua educação, de seu entendimento e de sua participação na vida social. Por outro lado, o desenvolvimento econômico, que torna o país emergente parceiro econômico internacional, obrigando-o a garantir a manutenção de instituições democráticas e transparentes.
De certa forma, o processo de globalização, ao criar mecanismos políticos e financeiros internacionalmente ligados, também cria obrigações e garantias políticas interligadas, cujo desrespeito é fator excludente de participação no mesmo processo.
Todavia, a democracia não pode realmente vingar se não for amparada por uma verdadeira compreensão e aceitação da cidadania por todos os componentes da sociedade. Ao tratar da cidadania, não estou somente me referindo ao contrato social de Rousseau, em que cada indivíduo se coloca à disposição da suprema direção da vontade geral.
Entendo como cidadania a compreensão, a aceitação e o respeito às regras e leis existentes, tanto na sua concepção quanto na sua aplicação e seus limites. O cidadão tem que entender o que lhe é permitido, e o que está além e aquém de seu alcance. Assim, a noção de permissão não diz respeito ao que é simplesmente autorizado por lei ou decreto, mas ao que socialmente é permitido dentro das normas do civismo social.
Assim, o indivíduo, ao receber determinado cargo ou estatuto social, encontra-se imbuído de deveres e direitos. O indivíduo cidadão, ao se deparar com os mesmos deveres e direitos, entende, aceita e respeita os limites impostos pela própria natureza aos direitos e às responsabilidades a ele confiados, e tende a agir com civismo e transparência.
Agora, o indivíduo que se aproveita dos direitos vinculados ao cargo ou estatuto que lhe é atribuído, embora tenha plena consciência de que, por motivos outros que não os de puro direito, se encontra fatualmente aquém ou além desses direitos, desconhece as regras básicas de civismo e transparência.
Assim, não basta implantar, por lei ou regras corporativas, o direito a verbas tais como ajuda de custo, de viagem ou de moradia, para que esses valores sejam intrinsecamente ligados ao cargo. É ainda preciso que o titular do cargo esteja em condições fatuais ou financeiras de pleitear o benefício desse direito.
Da mesma forma, não basta constatar que uma instituição nunca coibiu a contratação de familiares para que isso crie um direito à absolvição implícita dos atos cometidos, como se fossem atos normais de exercício do poder.
Quem está encarregado de poder representativo e dos direitos vinculados a esse poder e faz conscientemente uso impróprio deles, ainda que dentro de um âmbito legal, não se comporta de forma ética. Ao se prevalecer dessa legalidade para erradicar qualquer questionamento quanto à utilização dos direitos e regalias vinculados à sua função, o indivíduo deturpa a noção de legitimidade, desconhece e até despreza seu dever e papel de cidadão.
Ao comportar-se dessa forma, acaba por se tornar culpado de falsidade cívica e anula o próprio princípio de transparência que deve prevalecer para o fortalecimento das instituições democráticas.
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