sexta-feira, 6 de julho de 2012

Prepare seu lencinho




Quem nunca viveu a mais abrupta ruptura? Quem nunca presenciou a mais inesperada fratura? Quem jamais sentiu a mais aguda dor? Quem nunca passou por nada disso que atire a primeira pedra...na própria cara. Até a Eternidade está desoladamente estreando em São Paulo numa única sala, no Itaú Frei Caneca (prova do que apesar da crise atual e do movimento “occupy” os bancos ainda têm valor e razão de ser). Até a eternidade fez muito sucesso na França em 2010 – informação valiosa numa época em que os ossos do ofício foram substituídos pelo suor do box office. O diretor, Guillaume Canet, já mostrou todo o seu talento na sua estreia a cargo do ótimo thriller Não conte a ninguém, sutilmente adaptado do romance de Harlan Coben. Até a eternidade é um título um tanto bobo em relação ao título francês Les petits mouchoirs (os lencinhos) já que o filme não trata da eternidade, mas do tempo presente e da capacidade ou incapacidade de encararmos nossa efemeridade. Talvez por isso o filme traga uma das mortes mais secamente violentas que eu já vi no cinema (exatamente por não ser cinematograficamente sangrenta) e talvez por isso mostre sentimentos violentamente à flor da pele, brotando como espinhas no sol, como marcas da estação. O ato de morrer é mais curto do que a palavra em si, e se morremos um pouco a cada dia, também construímos a nossa vida como se esquecêssemos da encenação do último ato, da derradeira fala... que nos pega de surpresa e que queremos recordar até o apagão fatal. Contradição? Até a eternidade não traz respostas, porém desperta perguntas e faz com que amemos mais viver o instante, a instantaneidade. E por isso o filme merece ser visto. Além dos ótimos atores, entre os quais François Cluzet e a sempre impecável e emocionante Marion Cotillard.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

A insustentável leveza da leitura (e da torta de casca de batata...)



Há algo incrivelmente profundo, e ao mesmo tempo insustentavelmente leve, no ato de abrir um livro, folhear as suas páginas, sentir sua textura e seu cheiro, passar os olhos nos capítulos e parágrafos, percorrer o sumário como se estuda o mapa de uma trilha antes de iniciar a caminhada. Há algo incrivelmente leve, e ao mesmo tempo insustentavelmente profundo, no ato de escolher um livro para ser o companheiro temporário da nossa intimidade, ser o objeto de nossa atenção, dedicação e emoção por alguns momentos diários; ser aquele que apalpamos e levamos para a cama sem nenhum pudor; ser aquele que vigia, fiel guardião, no nosso criado-mudo enquanto dormimos; ser aquele que marcamos, dobramos, tatuamos, grafitamos, sublinhamos; aquele que afinal amamos e abandonamos, devoramos e trocamos por outro, deixando-o se empoeirar numa estante ou até, implacáveis, vendemos num sebo de bairro, oferecendo-o sem nenhum escrúpulo ao prazer alheio. Há algo incrivelmente belo e ao mesmo tempo insustentavelmente cruel no prazer da leitura. Prazer egoísta, hedonismo cerebral, curtição da retina por traz do véu das pálpebras, prazer egocêntrico e poligâmico do leitor com seus livros, reféns de um harém intelectual, ou de um lupanar... se pensarmos nos aficionados de Miller, Bukowski ou Manara.   

Pois bem, devo meu insustentável deleite atual à genial escritora americana Mary Ann Shaffer. Aos 74 anos, essa senhora da Virgínia Ocidental escreveu seu primeiro livro em 2008, em parceria com sua sobrinha Annie Barrows, sob o delicioso título: The Guernsey Literary and Potato Peel Pie Society. Utilizando o trunfo da troca de cartas, Mary Ann Shaffer nos leva ao encontro de personagens apaixonantes na Inglaterra pós Segunda Guerra Mundial, entre os quais, os seletivos membros de um impagável círculo literário da ilha de Guernsey e de sua especialidade, uma torta feita com casca de batata! Assim pode parecer bem pouco, mas garanto que o livro é puro prazer, ao mesmo tempo "so British" e atemporal já que mostra que, mesmo nos piores momentos, somos capazes da maior imaginação e dos mais surpreendentes recursos para superar as nossas desavenças.

E assim se dá o prazer da leitura. Com poucas coisas: ocasião, aconchego, recanto, porém sempre com vontade e mente aberta, viaja-se até uma ilha anglo-normanda para desfrutar o prazer de comer torta de casca de batata em boa companhia. Nada muito caro e que requeira gastar as milhas esforçadamente juntadas no cartão de crédito.

Ah, “last but not least”, Mary Ann Shaffer faleceu em 2008, antes mesmo da publicação do livro. Assim, ela nos traz alegria para além do seu último sopro e por isso deve ser muito agradecida. Ah, “last but not least (once again)”, o livro foi lançado em 2009 no Brasil pela editora Rocco sob o título Sociedade Literária e a Casca de Batata. Não sei o que a tradução vale, mas talvez valha experimentar... e saborear uma deliciosa torta de casca de batata.  

sexta-feira, 1 de junho de 2012

E La Nave Va



Escoteiro
Chefiando a fileira
Dando o ritmo
Distribuindo chibatas
E batinas
O gado segue
Indolente
Antes de imolado
De tropeçar e cair
Desfiladeiro abaixo
Seleção natural
Sulco dietético
Derramado no rego
Esparramando o ego
Escroto
Chefiando a roubalheira
Sempre alheio
Partilhando o dízimo
Como do Cristo
O orgânico corpo
A hóstia integral
A santa medalha
Que carregamos
No pescoço
Como o sino
Do gado
Indolente
Antes do matadouro
Escotilha
Última salvação
Antes da deriva
Do último banho
Da derradeira praia
Da afundada Piazza
San Marco
Narrador ou rinoceronte
Herói ou vítima
De seriado
Ùltima temporada
À procura de Tadzio
Antes de bater as botas
La nave va...

 

sexta-feira, 18 de maio de 2012

Alegria, alegria



Donna Summer. “Donna se meurt”, como uma piada de mau gosto costumava chamá-la da França no fim dos anos 1970. Só que Donna morreu e a piada ficou ainda mais idiota. Donna se foi, repentina, num surpreendente susto, num último soluço de fim de noitada. E na hora que eu soube da notícia, caí num mar de lembranças, "down deep inside", numa apneia cerebral e emocional. Nas profundezas da nossa alma estão os fundamentos da nossa credulidade, da nossa inocência, a construção do nosso “ciente e inconsciente”, dos nossos idos e das nossas revoltas, das nossas libidos e reviravoltas. Na estranheza das nossas entranhas estão os mais volutuosos suspiros, os “Love to Love You, Baby”, osI Feel Love”, hipnóticos, cardiacamente tesudos, batimentos que de tão batidos ficaram impregnados no coletivo, na construção do “ciente e inconsciente” do mundo, numa pista de boate gigante, um gargantuesco baile, para sempre. Donna se foi, e lá se vão os anéis da minha adolescência (os dedos, guardo para as futuras artroses), o ouro da juventude, a descoberta do groove e do grude, as noites em claro, tentando acalmar o ímpeto do calor das ondas, batendo o leite até virar creme, com as “Bad Girls”, sussurrando nos meus ouvidos. “I Remember Yesterday”. O ano era 1977 ou 1978, o Zenith em Paris, show da Donna Summer. Eu tinha 14 ou 15 anos. Noites em claro; já. Noites cremosas... as primeiras. Para ver o show (proibido aos menores de 18 anos) levei a minha mãe... E Donna cantou, dançou e rebolou. E Donna não precisou de efeitos especiais, voicoder e tela LCD para garantir seu sucesso. Bastou uma ótima banda, um microfone e um biombo atrás do qual ela deve ter trocado de roupa umas 4 ou 5 vezes para a alegria do público e da minha puberdade. Logo depois comprei os LPs, Four Seasons of Love, o qual vinha com calendário com fotos da musa, que pus na porta do meu quarto; depois, Bad Girls e Live and More. Aí a música mudou e meu gosto também. Mas sempre nos lembramos do nosso primeiro amor. Da primeira vez que o coração e o corpo entraram num uníssono, num tremor que sempre será nosso “personal tsunami”. Cada um tem o seu. O meu foi Donna Summer. Mulher que, se não foi tropicalista, trouxe à minha vida muita alegria e que, para sempre, vou amar.                     

sexta-feira, 11 de maio de 2012

Melting bote




Hoje comprei


Um pacote de bolachas


No supermercado


Hoje comprei


Um pacote de bolachas


Diferentes


Da mesma marca?


A de sempre


Porém de trigo integral


Hoje comprei


Saúde?


Ou engano?


Hoje comprei


Um pacote de bolachas


No super engano


Hoje comprei


Um pacote de bolachas


Diferentes


Da mesma raça?


A de sempre


Porém de sangue integral


Hoje comprei


ideologia


ou logro?


Hoje comprei


Um pacote de bolachas


Diferentes


Da mesma providência?


A de sempre


Porém de burrice integral


Fui enganado?


Não sei


Mas hoje comprei


Compulsivamente


Um pacote integral


De bolachas


Diferentes


Da marca de sempre


Porque quero ser integral


Ou integrado


Não sei


Mas comprei...



quarta-feira, 9 de maio de 2012

Yes, nós queremos brioche!


A confusão da galinhada do Atala na última virada cultural de São Paulo não deixa de ser a mais preocupante manifestação da maneira como uma elite política de São Paulo mostra que não superou os arquétipos da sociedade mais conservadora, no sentido mais monarquista do termo. Em resumo, a Virada Cultural de São Paulo este ano agregou à musica uma degustação de pratos de chefs servidos em bancas espalhadas pelo Minhocão, pelo preço módico de R$ 10,00 a R$ 15,00, entre os quais o superestrelado Alex Atala e sua famosa galinhada. Infelizmente, quem ficou horas esperando na fila da galinhada levou frango de goleiro e o Atala não deu as caras, incapacitado que teria ficado, apesar do seu DOM, de chegar até o lugar da comilança sem ser depenado. No dia seguinte da falsa micareta, o secretário da cultura da cidade de São Paulo, Carlos Augusto Calil, rebatando críticas, declarou que “A alta gastronomia nunca vai ser um evento de massa”, rejeitando a culpa do mico sobre a imprensa que teria dado importância demais ao acontecimento. Não pretendo aqui discutir o papel da imprensa nas sociedades democráticas.
Basta lembrar que a imprensa deve ter liberdade de expressão e o leitor liberdade de apreciação e de avaliação. Trata-se de uma questão de equilíbrio, precário certo, porém necessário. Mas, se por um lado, o fascismo aberto e descarado consiste em proibir a divulgação de opiniões e informações, por outro lado, o fascismo disfarçado de democracia (e, portanto, ainda pior) consiste em trocar a proibição pela crítica do uso da liberdade de opinião; isso não passa de um diabólico envenenamento da comunicação democrática por meio do amargo soro da dúvida sobre a objetividade (e, consequentemente, a deontologia profissional) de quem divulgou a informação. Mas, além dessas considerações que dizem respeito a uma profissão à qual não pertenço e que sabe muito bem se defender sem mim, mais assustador é o teor segregacionista da declaração de um secretário que da cultura parece só ter o título. Afinal, o que quer dizer “alta gastronomia” em relação à comida de rua?
Não podemos esquecer que os restaurantes da forma que os concebemos hoje provêm de um conceito que nasceu no século 19, enquanto a comida servida nas ruas sempre fez parte das mais intrínsecas formas de sociabilidade. Isso vale para todas as culturas desde que o mundo é mundo e o Brasil não escapa dessa característica, como lembrou tão bem a jornalista gastronômica Cristiana Couto em uma recente matéria do seu blog: http://sejabemvinho.blogfolha.uol.com.br/2012/04/18/como-era-a-comida-de-rua-ha-200-anos/
Mas, na nossa época em que o poder aquisitivo parece ser o único critério de avaliação do valor do individuo, em que a inteligência vem sendo esmagada pelo limite do cheque especial, em que as academias cuidam de todos os músculos menos do cérebro, talvez o secretário da cultura da cidade de São Paulo seja mais um “digno” representante dos tempos atuais. Tempos que não são mais racistas, mas em que o politicamente correto trocou a diferença de cor da pele pela diferença de cor do cartão de crédito. Assim, a segregação pelo paladar talvez seja o último requinte de um desdém muito maior, da rejeição que se tem em relação à boa parte da população, aquela que não deveria sair da copa, nem ter estação de metrô para chegar ao shopping Higienópolis, shopping que, aliás, fica bem perto do Minhocão onde desandou a popular galinhada, que, de repente, tornou-se referência da “alta gastronomia”.
Tudo isso não passa de um triste sarcasmo escancaradamente manifestado por quem transforma a comida de rua em “street food”, acreditando que assim, por meio dessa americanização, o bom e velho rango adquiriu uma (fake) legitimidade aristocrática. Pois bem, mas a história (e suas lendas) nos conta que em 1789, quando o povo faminto de Paris chegou às portas do castelo de Versalhes, a cerca de 20 km da capital, sem ter estação de metrô por perto, Maria-Antonieta teria respondido que quem estivesse com fome precisava comer “brioche”. Isso acabou lhe custando a cabeça. Algo a se meditar...