sexta-feira, 17 de abril de 2009

A divina comédia - Da efemeridade dos fatos

Ao entrevistar Caetano Veloso no último dia 15, para o lançamento de seu novo CD, Zii e Zie, Luiz Fernando Vianna, da Folha de S.Paulo, perguntou se a música “A base de Guantánamo”, incluída nesse disco, não arriscava à caduquice diante da decisão de Obama de desmontar a base e reduzir as restrições políticas e econômicas em relação a Cuba: http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u550845.shtml.

O cantor respondeu esclarecidamente: “A minha indignação não envelheceu, não pode nunca envelhecer. A canção não é uma noticia de jornal”...

A questão do obsoletismo da temática abordada por Veloso nessa canção e a resposta por ele dada à pergunta do jornalista levantam uma série de reflexões que, de certa forma, são intrinsecamente ligadas: 1) a natureza efêmera dos fatos do ponto de vista jornalístico e a consequente relativização de seu impacto a longo prazo; e 2) o esquecimento desses fatos e a negação de seu papel histórico e social como resultado dessa relativização.


É inegável que a proposta de Caetano Veloso vai além de uma simples denúncia do sistema carcerário de Guantánamo e das chocantes cenas de tortura e humilhação de prisioneiros políticos amplamente midiatizadas pela imprensa internacional durante o governo Bush. É também incontestável que o cantor não se limita a assinalar o simbolismo da violação dos direitos humanos pelos EUA em território cubano. Trata-se da manifestação do artista diante da contradição política de um sistema democrático que se veste da imagem de respeitoso e ardente defensor de valores vinculados aos direitos humanos, mas que utiliza as formas mais desprezíveis de desrespeito aos mesmos direitos humanos como manifestação de sua hegemonia.

Ora, o cantor não precisou fazer um discurso de sociologia política para expressar sua indignação. Pelo contrário, resumiu magnificamente sua reflexão em uma simples frase: “O fato dos americanos desrespeitarem os direitos humanos em solo cubano é por demais forte simbolicamente para eu não me abalar”, que ele repete ao longo da música como um leitmotiv. Porém, a relativização da letra de Veloso ao simples nível fatual constitui uma forma redutora de analisar o pensamento do autor.

Ao identificá-la como mera narração de um fato, corre-se o risco de limitar sua importância à sua pertinência jornalística, que, por natureza, é passageira, e implicitamente reduzir seu impacto a esse reduto de pertinência.

Assim, há uma negação implícita de toda dimensão maior (social, política ou simbólica) que a manifestação do artista possa ter, que a despe de seu brilho e de sua profundeza. Torná-la fatual faz com que ela verta também para o eventual, o corriqueiro, o fútil, o esquecível.

E, por extensão, existe o perigo latente de abrir uma brecha para sugerir a possível caduquice de toda obra, que, ao se referir a acontecimentos de determinada época ou situação, limitaria sua pertinência à duração dos eventos narrados. Então, por que não qualificar de caduca a música “Vai passar”, de Chico Buarque, já que decorreram mais de vinte anos desde o movimento “Diretas já” e o fim da ditadura militar? E para que ler o livro Arquipélago Gulag, de Alexandre Soljenítsin, se não existe mais União Soviética nem stalinismo?

Dessa forma, a limitação da compreensão do pensamento ao fatual logo se torna a justificação implícita do esquecimento coletivo que faz com que as novas gerações não saibam medir a importância sociocultural de inúmeros acontecimentos por falta de referencial histórico que lhes fale sobre esses acontecimentos.

O clipe ao vivo da música “A base de Guantánamo” pode ser visto no seguinte endereço: http://www.youtube.com/watch?v=rXJQTGix-gc; Caetano Veloso comenta a música no próprio blog http://www.obraemprogresso.com.br/2008/06/19/caetano-veloso-comenta-a-musica-base-de-guantanamo/

Um comentário:

  1. Valeu mesmo Eric. São textos assim que nos acordam para vermos o real significado de tantas coisas que a mídia nos despeja. As vezes somos pegos distraídos, por um "grande jornal" via seu reporter, quase induzidos a uma resposta, não fosse Caetano tão controverso quanto antenado para mais uma vez, levantar uma polêmica onde tem que haver. E seu texto não é menos necessário pois alem de fatual nos alerta para o que não pode "caducar" só pelo fato de já ser história pois não deixa de nos rondar. Afinal "Vai Passar" talvez esteja globalizada e no gerúndio: Está passando ?

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