terça-feira, 24 de março de 2009

Play it again, Sam - Lodger - David Bowie

Nos dias de hoje, em que o virtual se tornou algo concreto, esquecemos que as sensações, na sua essência, quase sempre precisam do suporte físico, do objeto, do palpável. Assim, podemos louvar os tocadores de mp3, mp4 ou outra nova tecnologia que aparecer, por permitirem ouvir música em qualquer lugar, a qualquer momento. Porém, duvido muito que possamos sentir mais prazer ao tentar decifrar na telinha do iPod o nome da banda e o título da música que pegamos ontem em um site de compartilhamento de arquivos do que ao escutar Sgt Pepper’s Lonely Hearts Club Band ou ainda The Beggar's Banquet com a capa do disco na mão, acompanhando as letras das canções e olhando para a cara do Paul, do John ou do Mick.

Daí a idéia que tive de compartilhar neste espaço virtual as emoções (ainda palpáveis!) que senti ao descobrir certos discos na época em que ainda eram carinhosamente chamados de “bolachas”. Alguns podem ter caído no esquecimento, porque têm a cara de certa época, ou exatamente porque não tinham a cara daquele momento. Outros podem não ser os melhores, ou os mais conceituados de tal ou tal artista, mas trazem à minha mente lembranças prazerosas. São tesouros que merecem ser resgatados. É mel para os ouvidos, é licor para o coração. Por isso, espero que esta matéria provoque em vocês a vontade de descobri-los, mesmo que seja através de download, em mp3, para tocar no computador...


Lançado em maio de 1979, Lodger é até hoje considerado o 3º opus da trilogia berlinense de David Bowie, cujos outros títulos são Low (1977) e Heroes (1978). Trata-se de certa forma de um equívoco, já que esse disco foi gravado em Montreux (Suíça) e em Nova York – e não em Berlim –, e não reproduz o formato e o clima dos dois trabalhos precedentes, que se caracterizavam pela divisão entre faixas (e lados do vinil) cantadas e instrumentais, e a influência de artistas como Kraftwerk e Neu!

Entretanto, por ter sido Lodger igualmente produzido por Tony Visconti e Brian Eno, e conter construções musicais que remetem aos trabalhos anteriores, logo houve comparações e nem sempre a favor deste disco, que segundo certos críticos seria o mais fraco dos três. Discordo dessa opinião, já que a meu ver trata-se de uma obra bem diferente e única em vários aspectos.

Primeiro, há de se notar uma nova vertente de influências percussivas e étnicas, não muito comuns na obra de Bowie, como em “African Night Flight” (em que Brian Eno programa os teclados em sequências – loops – para simular ruídos noturnos da selva), ou ainda “Yassassin” (“longa vida” em turco).
Depois, o tema da viagem, do deslocamento, da falta de residência fixa é constante neste disco, por se encontrar não apenas no próprio título (“locatário”), mas também na capa – em que Bowie aparece em uma foto em formato de cartão-postal endereçado à própria gravadora, com o corpo contorcido e ferido, em um banheiro de hotel – e igualmente no tema e nos arranjos de títulos como “Fantastic Voyage” e “Move On”.


De fato, a utilização de loops nos teclados, como eu dizia mais acima, constitui uma base constante na construção das músicas de Lodger, em que a repetição sequencial acaba por criar uma base rítmica percussiva quase hipnótica, como, por exemplo, nas faixas “Repetition” ou “Red Money”. Nesta última, há de se notar a participação do guitarrista Reeves Gabrels, músico preponderante no desenvolvimento do trabalho de Bowie nos anos 1990. Por sua vez, Brian Eno seguiria essas experimentações logo depois em parcerias com David Byrne.

Outras faixas, finalmente, têm inspiração mais rock ou funky, como “Boys Keep Swinging”, “Red Sails” ou “D.J.”, com a presença marcante de Carlos Alomar ou Adrian Belew, e são premissas do Bowie dos anos 1980, em que ele se tornaria um astro mundialmente popular com músicas como “Ashes to Ashes”, “Fashion” ou ainda “Let’s Dance”.

Por esses motivos, penso que Lodger é sem dúvida um disco importante na obra de David Bowie, tanto por sua riqueza musical quanto pelo fato de se situar no cruzamento entre o experimentalismo dos anos 1970 e a consagração dos anos 1980, e por desenhar os primeiros contornos de Scary Monsters (1980), uma das obras pioneiras e fundamentais do rock dessa década.



Recomendo também o excelente livro de Loïc Picaud - David Bowie et le rock dandy - Hors Collection Editions: http://www.evene.fr/livres/livre/loic-picaud-david-bowie-et-le-rock-dandy-25541.php, ou ainda a biografia muito completa e documentada de Jérôme Soligny http://www.evene.fr/livres/livre/jerome-soligny-david-bowie-9337.php.

Finalmente, acabou de ser lançada uma versão remix da faixa "D.J." pelo DJ Benny Benassi e que pode ser ouvida no site de David Bowie: http://davidbowie.com/news/index.php?id=20090309/.

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