terça-feira, 8 de maio de 2012

O prazer do debate


 
O meu amigo Milton Dutra Pereira me mandou um e-mail muito instigante sobre Caetano Veloso e Chico Buarque, o qual cutucou meu prazer intelectual e provocou uma resposta. O Milton não tem blog, mas tem argúcia e sabe escrever, algo um tanto raro nos tempos atuais. E, como vejo o blog como uma maravilhosa ferramenta de troca e divulgação de ideais, resolvi publicar nossa correspondência, tenha o valor que tiver, tratando-se apenas de um manifesto existencial, no sentido de existirmos. Talvez apenas um intercâmbio de ideias na falta de ideais, mas mesmo assim algo valioso. Porque na época em que todos nós somos facebucados, em que podemos graduar nosso interesse em “like”, “comment” e “share”, é muito fácil brincarmos de convivência, numa grande rede confraternal regulada por aplicativos que nos controlam e que orgulhosamente colecionamos como se colecionam figurinhas de ídolos de futebol. E nessa rede nós nos espelhamos nas telas de alta definição, numa exibição narcisista, em que é preciso competir orgulhosamente exibindo telefones muito mais “smart” do que seus donos, numa vã corrida à procura da inteligência perdida. Pois bem, essa troca de e-mail, assim como esse “post” não entendem revelar nenhuma verdade em relação aos temas abordados, apenas lembrar que as ferramentas modernas são válidas desde que queiramos usá-las como jocosos despertadores mentais e não apenas como placebos de uma ânsia de nos mostramos “internetamente” vivos e sociáveis.


Milton:


TALENTO E INTUIÇÃO 

É estranho e ao mesmo tempo fascinante como em termos de música brasileira ainda se possa ser surpreendido por “verdades” que se supunha solidificadas e acomodadas de uma forma confortável, e que de repente ressurgem como “novidades” porque se mostram de um jeito como ainda não tínhamos visto. E é por se tratar de figurões desta música que o fato é tanto surpreendente quanto substantivo (relevante). Caetano e Chico são as figuras que motivam esta elucubração um tanto difusa que vou tentar clarear.

Em primeiro lugar, de toda a rica e prolífica geração surgida nos anos sessenta são hoje os dois que mantém mais ativa e constante a veia criativa e com qualidade à altura de sua obra anterior.

No caso de Caetano, numa visão –ainda que tardia – de seus dois últimos trabalhos (2006) e Zii e Zie (2009) fica claro que continuam vivas sua inconfundível inventividade e inquietação artística. Mas o que impressiona mesmo é a inovação e atualidade de sua música. Cercando-se de músicos competentes e modernos a partir do filho Moreno, mais Kassim e Pedro Sá, Caetano navega, camaleonicamente como é seu estilo, numa sonoridade capaz de envolver tanto seu público cativo quanto gerações bem mais jovens. O melhor exemplo disto é o que fazem, a banda e o cantor, com Incompatibilidade de Gênios de João Bosco, um samba com malemolência e veneno tipicamente brasileiros que teve, além da virtuosa gravação do autor, outra com Clementina de Jesus, simplesmente transcendental. Nessa versão “transmoderna”, pra usar um termo ao gosto do próprio cantor, com a preciosa contribuição da Banda Cê, o que se houve é um amálgama de samba sincopado e toques de balada mais a candente interpretação do mano Caetano. Um luxuoso prazer ainda que envolto numa capa de minimalista modernidade. 

Chico voltou à música no ano passado (2011) depois de longa ausência envolvido com sua, a esta altura, prestigiosa carreira literária. No álbum chamado simplesmente “Chico” ele mantém o que foram algumas marcas de sua música em composições suaves e delicadas. Nas letras o que à primeira vista pode parecer simples na verdade contem elaboradas e singulares ideias representadas em sua sempre rica e às vezes lúdica arquitetura de palavras.

Poesias e crônicas desfilam numa diversidade de estilos que pode ir de “Meu Querido Diário” uma espécie de versão atualizada do seu antigo “Cotidiano”, a “Se Eu Soubesse” que pode lembrar uma chanson française. Há variações que tendem a um tom mais reflexivo, mas sem atingirem um clima taciturno. 

Sem pretender criar nenhuma teoria localizo uma coincidência na experiência artística e de vida de ambos. De uma forma ou de outra estão ou estiveram ligados à palavra escrita.

Caetano, que ainda nos tempos de faculdade pretendeu ser crítico de cinema, anos atrás lançou um livro muito bem escrito e sobretudo honesto, “Verdade Tropical”, sobre os primeiros anos de sua carreira até partir para o exílio. Atualmente escreve uma coluna aos domingos no “O Globo” no seu melhor estilo instigante e polemista.

Chico há muitos anos se propõe uma alentada carreira literária e já afirmou que a literatura é muito mais intrínseca nele que a música que seria “apenas instintiva”. Como leitor de duas obras suas – “Budapeste” e “Leite Derramado” – me rendo absolutamente ao seu talento como autor. Sempre bem recebido pela crítica (mesmo com algumas contestações), é também um sucesso de vendas e editado em muitos países.

Minha pergunta é se o fato de exercerem o ofício cartesiano da escrita, de alguma forma, como equilíbrio, alimenta e estimula em suas respectivas personas, o lado mágico e intuitivo da música.

Eu:

Concordo plenamente com você em todos os pontos. É óbvio que existem diferenças fundamentais entre Caetano e Chico, tanto nas personalidades quanto na verve artística e criativa. No entanto, concordo quando você constata que são os últimos grandes representantes e criadores da música brasileira que nasceu nos anos 1960.

No que diz respeito a Caetano, o lado camaleão está onipresente em toda a carreira do cantor. Nesse sentido, já foi feito por críticos o paralelo entre Caetano e David Bowie. São artistas multifacetados que sempre souberam se inspirar nas mais recentes ondas e tendências para criar uma obra em evolução permanente. Contudo, é incontestável que, assim como Bowie, trata-se de um revestimento sonoro, em uma corrida contra o tempo e o fato de envelhecer, já que, se você ouvir e Zii e Zie para além dos arranjos, verá que a estrutura das composições de Caetano remete fundamentalmente às demais obras que ele escreveu desde o começo da carreira. A mesma coisa acontece com a obra do Bowie. Da mesma forma, a “transmodernidade” tão cara ao artista, ou o “transsamba”, que em si é uma desconstrução de formas clássicas de composição musical, é uma maneira atual de proceder a releituras, o que outros já fizeram antes dele, notadamente um dos seus mais caros mestres, João Gilberto. Não é à toa que “O homem velho” talvez seja a música mais pungente do CD , assim como “Never get old” foi do CD Reality de David Bowie. Acredito que grande parte da inquietação desses dois artistas seja profundamente autorreferencial e narcisista, sendo a busca permanente da criatividade um tipo de mecanismo, de artefato para dar vazão a essa inquietação sobre a própria finitude, como um “retrato de Dorian Gray”.

No caso de Chico, há incontestavelmente uma preocupação bem parecida, mas de forma mais reflexiva, como você diz, ou mais introvertida. Contudo, a inquietação permanece em uma sofisticação cada vez maior da palavra, em jogo de pistas em que as aparências enganam, os lugares e as épocas se confundem, numa mesma corrida desenfreada contra o tempo, cujo fim, como em Leite Derramado, tem como característica de ser tragicamente inelutável. Com o decorrer do tempo, a jocosidade do malandro e do amante das “mulheres de Atenas”, foi recuperada pela implacabilidade de nosso destino, algo que começou a se desenhar em “O velho Francisco” e que, no CD Chico, está mais turva, porém incontestavelmente presente nas entrelinhas das canções dedicadas ao amor, à solidão e à relação de Chico com Thaís Gulin, que, sem dúvida, constitui mais uma manifestação da corrida do artista contra o tempo, outro retrato de Dorian Gray. Como se o artista epicurista tivesse descoberto a tragédia grega. 

Será que Caetano e Chico são dois artistas wildianos? Quem sabe, essa seja a resposta à tua pergunta final...


Nenhum comentário:

Postar um comentário