Milton:
TALENTO E INTUIÇÃO
É estranho e ao mesmo
tempo fascinante como em termos de música brasileira ainda se possa ser
surpreendido por “verdades” que se supunha solidificadas e acomodadas de uma
forma confortável, e que de repente ressurgem como “novidades” porque se
mostram de um jeito como ainda não tínhamos visto. E é por se tratar de
figurões desta música que o fato é tanto surpreendente quanto substantivo
(relevante). Caetano e Chico são as figuras que motivam esta elucubração um
tanto difusa que vou tentar clarear.
Em primeiro lugar, de
toda a rica e prolífica geração surgida nos anos sessenta são hoje os dois que
mantém mais ativa e constante a veia criativa e com qualidade à altura de sua
obra anterior.
No caso de Caetano, numa
visão –ainda que tardia – de seus dois últimos trabalhos Cê (2006) e Zii
e Zie (2009) fica claro que continuam vivas sua inconfundível inventividade
e inquietação artística. Mas o que impressiona mesmo é a inovação e atualidade
de sua música. Cercando-se de músicos competentes e modernos a partir do filho
Moreno, mais Kassim e Pedro Sá, Caetano navega, camaleonicamente como é seu
estilo, numa sonoridade capaz de envolver tanto seu público cativo quanto
gerações bem mais jovens. O melhor exemplo disto é o que fazem, a banda e o
cantor, com Incompatibilidade de Gênios de João Bosco, um samba com
malemolência e veneno tipicamente brasileiros que teve, além da virtuosa
gravação do autor, outra com Clementina de Jesus, simplesmente transcendental.
Nessa versão “transmoderna”, pra usar um termo ao gosto do próprio cantor, com
a preciosa contribuição da Banda Cê, o que se houve é um amálgama de samba
sincopado e toques de balada mais a candente interpretação do mano Caetano. Um
luxuoso prazer ainda que envolto numa capa de minimalista modernidade.
Chico voltou à música no
ano passado (2011) depois de longa ausência envolvido com sua, a esta altura,
prestigiosa carreira literária. No álbum chamado simplesmente “Chico” ele
mantém o que foram algumas marcas de sua música em composições suaves e
delicadas. Nas letras o que à primeira vista pode parecer simples na verdade
contem elaboradas e singulares ideias representadas em sua sempre rica e às
vezes lúdica arquitetura de palavras.
Poesias e crônicas
desfilam numa diversidade de estilos que pode ir de “Meu Querido Diário” uma
espécie de versão atualizada do seu antigo “Cotidiano”, a “Se Eu Soubesse” que
pode lembrar uma chanson française. Há variações que tendem a um
tom mais reflexivo, mas sem atingirem um clima taciturno.
Sem pretender criar
nenhuma teoria localizo uma coincidência na experiência artística e de vida de
ambos. De uma forma ou de outra estão ou estiveram ligados à palavra escrita.
Caetano, que ainda nos
tempos de faculdade pretendeu ser crítico de cinema, anos atrás lançou um livro
muito bem escrito e sobretudo honesto, “Verdade Tropical”, sobre os primeiros
anos de sua carreira até partir para o exílio. Atualmente escreve uma coluna
aos domingos no “O Globo” no seu melhor estilo instigante e polemista.
Chico há muitos anos se
propõe uma alentada carreira literária e já afirmou que a literatura é muito
mais intrínseca nele que a música que seria “apenas instintiva”. Como leitor de
duas obras suas – “Budapeste” e “Leite Derramado” – me rendo absolutamente ao
seu talento como autor. Sempre bem recebido pela crítica (mesmo com algumas
contestações), é também um sucesso de vendas e editado em muitos países.
Minha pergunta é se o
fato de exercerem o ofício cartesiano da escrita, de alguma forma, como equilíbrio,
alimenta e estimula em suas respectivas personas, o lado mágico e
intuitivo da música.
Eu:
Concordo
plenamente com você em todos os pontos. É óbvio que existem diferenças
fundamentais entre Caetano e Chico, tanto nas personalidades quanto na verve artística
e criativa. No entanto, concordo quando você constata que são os últimos
grandes representantes e criadores da música brasileira que nasceu nos anos
1960.
No que
diz respeito a Caetano, o lado camaleão está onipresente em toda a carreira do
cantor. Nesse sentido, já foi feito por críticos o paralelo entre Caetano e
David Bowie. São artistas multifacetados que sempre souberam se inspirar nas
mais recentes ondas e tendências para criar uma obra em evolução permanente.
Contudo, é incontestável que, assim como Bowie, trata-se de um revestimento
sonoro, em uma corrida contra o tempo e o fato de envelhecer, já que, se você
ouvir Cê e Zii e Zie para além dos arranjos, verá que a estrutura
das composições de Caetano remete fundamentalmente às demais obras que ele
escreveu desde o começo da carreira. A mesma coisa acontece com a obra do
Bowie. Da mesma forma, a “transmodernidade” tão cara ao artista, ou o
“transsamba”, que em si é uma desconstrução de formas clássicas de composição
musical, é uma maneira atual de proceder a releituras, o que outros já fizeram
antes dele, notadamente um dos seus mais caros mestres, João Gilberto. Não é à
toa que “O homem velho” talvez seja a música mais pungente do CD Cê, assim
como “Never get old” foi do CD Reality de David Bowie. Acredito que grande
parte da inquietação desses dois artistas seja profundamente autorreferencial e
narcisista, sendo a busca permanente da criatividade um tipo de mecanismo, de
artefato para dar vazão a essa inquietação sobre a própria finitude, como um
“retrato de Dorian Gray”.
No caso
de Chico, há incontestavelmente uma preocupação bem parecida, mas de forma mais
reflexiva, como você diz, ou mais introvertida. Contudo, a inquietação
permanece em uma sofisticação cada vez maior da palavra, em jogo de pistas em
que as aparências enganam, os lugares e as épocas se confundem, numa mesma
corrida desenfreada contra o tempo, cujo fim, como em Leite Derramado,
tem como característica de ser tragicamente inelutável. Com o decorrer do
tempo, a jocosidade do malandro e do amante das “mulheres de Atenas”, foi
recuperada pela implacabilidade de nosso destino, algo que começou a se
desenhar em “O velho Francisco” e que, no CD Chico, está mais turva,
porém incontestavelmente presente nas entrelinhas das canções dedicadas ao
amor, à solidão e à relação de Chico com Thaís Gulin, que, sem dúvida,
constitui mais uma manifestação da corrida do artista contra o tempo, outro
retrato de Dorian Gray. Como se o artista epicurista tivesse descoberto a
tragédia grega.
Será que
Caetano e Chico são dois artistas wildianos? Quem sabe, essa seja a resposta à
tua pergunta final...
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