A confusão da galinhada do Atala na última virada cultural
de São Paulo não deixa de ser a mais preocupante manifestação da maneira como uma
elite política de São Paulo mostra que não superou os arquétipos da sociedade
mais conservadora, no sentido mais monarquista do termo. Em resumo, a Virada Cultural
de São Paulo este ano agregou à musica uma degustação de pratos de chefs
servidos em bancas espalhadas pelo Minhocão, pelo preço módico de R$ 10,00 a R$
15,00, entre os quais o superestrelado Alex Atala e sua famosa galinhada. Infelizmente,
quem ficou horas esperando na fila da galinhada levou frango de goleiro e o
Atala não deu as caras, incapacitado que teria ficado, apesar do seu DOM, de
chegar até o lugar da comilança sem ser depenado. No dia seguinte da falsa
micareta, o secretário da cultura da cidade de São Paulo, Carlos Augusto Calil,
rebatando críticas, declarou que “A alta gastronomia nunca vai ser um evento de
massa”, rejeitando a culpa do mico sobre a imprensa que teria dado importância
demais ao acontecimento. Não pretendo aqui discutir o papel da imprensa nas
sociedades democráticas.
Basta lembrar que a imprensa deve ter liberdade de
expressão e o leitor liberdade de apreciação e de avaliação. Trata-se de uma
questão de equilíbrio, precário certo, porém necessário. Mas, se por um lado, o
fascismo aberto e descarado consiste em proibir a divulgação de opiniões e informações,
por outro lado, o fascismo disfarçado de democracia (e, portanto, ainda pior)
consiste em trocar a proibição pela crítica do uso da liberdade de opinião; isso
não passa de um diabólico envenenamento da comunicação democrática por meio do amargo
soro da dúvida sobre a objetividade (e, consequentemente, a deontologia
profissional) de quem divulgou a informação. Mas, além dessas considerações que
dizem respeito a uma profissão à qual não pertenço e que sabe muito bem se
defender sem mim, mais assustador é o teor segregacionista da declaração de um
secretário que da cultura parece só ter o título. Afinal, o que quer dizer “alta
gastronomia” em relação à comida de rua?
Não podemos esquecer que os
restaurantes da forma que os concebemos hoje provêm de um conceito que nasceu
no século 19, enquanto a comida servida nas ruas sempre fez parte das mais intrínsecas
formas de sociabilidade. Isso vale para todas as culturas desde que o mundo é
mundo e o Brasil não escapa dessa característica, como lembrou tão bem a
jornalista gastronômica Cristiana Couto em uma recente matéria do seu blog: http://sejabemvinho.blogfolha.uol.com.br/2012/04/18/como-era-a-comida-de-rua-ha-200-anos/
Mas, na nossa época em que o poder aquisitivo parece ser o único critério de
avaliação do valor do individuo, em que a inteligência vem sendo esmagada pelo limite
do cheque especial, em que as academias cuidam de todos os músculos menos do
cérebro, talvez o secretário da cultura da cidade de São Paulo seja mais um “digno”
representante dos tempos atuais. Tempos que não são mais racistas, mas em que o
politicamente correto trocou a diferença de cor da pele pela diferença de cor
do cartão de crédito. Assim, a segregação pelo paladar talvez seja o último
requinte de um desdém muito maior, da rejeição que se tem em relação à boa
parte da população, aquela que não deveria sair da copa, nem ter estação de
metrô para chegar ao shopping Higienópolis, shopping que, aliás, fica bem perto
do Minhocão onde desandou a popular galinhada, que, de repente, tornou-se
referência da “alta gastronomia”.
Tudo isso não passa de um triste sarcasmo escancaradamente
manifestado por quem transforma a comida de rua em “street food”, acreditando
que assim, por meio dessa americanização, o bom e velho rango adquiriu uma (fake)
legitimidade aristocrática. Pois bem, mas a história (e suas lendas) nos conta
que em 1789, quando o povo faminto de Paris chegou às portas do castelo de
Versalhes, a cerca de 20 km da capital, sem ter estação de metrô por perto, Maria-Antonieta
teria respondido que quem estivesse com fome precisava comer “brioche”. Isso
acabou lhe custando a cabeça. Algo a se meditar...
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