quarta-feira, 9 de maio de 2012

Yes, nós queremos brioche!


A confusão da galinhada do Atala na última virada cultural de São Paulo não deixa de ser a mais preocupante manifestação da maneira como uma elite política de São Paulo mostra que não superou os arquétipos da sociedade mais conservadora, no sentido mais monarquista do termo. Em resumo, a Virada Cultural de São Paulo este ano agregou à musica uma degustação de pratos de chefs servidos em bancas espalhadas pelo Minhocão, pelo preço módico de R$ 10,00 a R$ 15,00, entre os quais o superestrelado Alex Atala e sua famosa galinhada. Infelizmente, quem ficou horas esperando na fila da galinhada levou frango de goleiro e o Atala não deu as caras, incapacitado que teria ficado, apesar do seu DOM, de chegar até o lugar da comilança sem ser depenado. No dia seguinte da falsa micareta, o secretário da cultura da cidade de São Paulo, Carlos Augusto Calil, rebatando críticas, declarou que “A alta gastronomia nunca vai ser um evento de massa”, rejeitando a culpa do mico sobre a imprensa que teria dado importância demais ao acontecimento. Não pretendo aqui discutir o papel da imprensa nas sociedades democráticas.
Basta lembrar que a imprensa deve ter liberdade de expressão e o leitor liberdade de apreciação e de avaliação. Trata-se de uma questão de equilíbrio, precário certo, porém necessário. Mas, se por um lado, o fascismo aberto e descarado consiste em proibir a divulgação de opiniões e informações, por outro lado, o fascismo disfarçado de democracia (e, portanto, ainda pior) consiste em trocar a proibição pela crítica do uso da liberdade de opinião; isso não passa de um diabólico envenenamento da comunicação democrática por meio do amargo soro da dúvida sobre a objetividade (e, consequentemente, a deontologia profissional) de quem divulgou a informação. Mas, além dessas considerações que dizem respeito a uma profissão à qual não pertenço e que sabe muito bem se defender sem mim, mais assustador é o teor segregacionista da declaração de um secretário que da cultura parece só ter o título. Afinal, o que quer dizer “alta gastronomia” em relação à comida de rua?
Não podemos esquecer que os restaurantes da forma que os concebemos hoje provêm de um conceito que nasceu no século 19, enquanto a comida servida nas ruas sempre fez parte das mais intrínsecas formas de sociabilidade. Isso vale para todas as culturas desde que o mundo é mundo e o Brasil não escapa dessa característica, como lembrou tão bem a jornalista gastronômica Cristiana Couto em uma recente matéria do seu blog: http://sejabemvinho.blogfolha.uol.com.br/2012/04/18/como-era-a-comida-de-rua-ha-200-anos/
Mas, na nossa época em que o poder aquisitivo parece ser o único critério de avaliação do valor do individuo, em que a inteligência vem sendo esmagada pelo limite do cheque especial, em que as academias cuidam de todos os músculos menos do cérebro, talvez o secretário da cultura da cidade de São Paulo seja mais um “digno” representante dos tempos atuais. Tempos que não são mais racistas, mas em que o politicamente correto trocou a diferença de cor da pele pela diferença de cor do cartão de crédito. Assim, a segregação pelo paladar talvez seja o último requinte de um desdém muito maior, da rejeição que se tem em relação à boa parte da população, aquela que não deveria sair da copa, nem ter estação de metrô para chegar ao shopping Higienópolis, shopping que, aliás, fica bem perto do Minhocão onde desandou a popular galinhada, que, de repente, tornou-se referência da “alta gastronomia”.
Tudo isso não passa de um triste sarcasmo escancaradamente manifestado por quem transforma a comida de rua em “street food”, acreditando que assim, por meio dessa americanização, o bom e velho rango adquiriu uma (fake) legitimidade aristocrática. Pois bem, mas a história (e suas lendas) nos conta que em 1789, quando o povo faminto de Paris chegou às portas do castelo de Versalhes, a cerca de 20 km da capital, sem ter estação de metrô por perto, Maria-Antonieta teria respondido que quem estivesse com fome precisava comer “brioche”. Isso acabou lhe custando a cabeça. Algo a se meditar...



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