Donna
Summer. “Donna se meurt”, como uma piada de mau gosto costumava chamá-la da França
no fim dos anos 1970. Só que Donna morreu e a piada ficou ainda mais idiota. Donna
se foi, repentina, num surpreendente susto, num último soluço de fim de noitada.
E na hora que eu soube da notícia, caí num mar de lembranças, "down deep inside", numa apneia cerebral e
emocional. Nas profundezas da nossa alma estão os fundamentos da nossa
credulidade, da nossa inocência, a construção do nosso “ciente e inconsciente”,
dos nossos idos e das nossas revoltas, das nossas libidos e reviravoltas. Na
estranheza das nossas entranhas estão os mais volutuosos suspiros, os “Love to
Love You, Baby”, os “I Feel Love”, hipnóticos, cardiacamente
tesudos, batimentos que de tão batidos ficaram impregnados no coletivo, na
construção do “ciente e inconsciente” do mundo, numa pista de boate gigante, um
gargantuesco baile, para sempre. Donna se foi, e lá se vão os anéis da minha adolescência
(os dedos, guardo para as futuras artroses), o ouro da juventude, a descoberta
do groove e do grude, as noites em
claro, tentando acalmar o ímpeto do calor das ondas, batendo o leite até virar
creme, com as “Bad Girls”, sussurrando nos meus ouvidos. “I Remember Yesterday”.
O ano era 1977 ou 1978, o Zenith em Paris, show da Donna Summer. Eu tinha 14 ou
15 anos. Noites em claro; já. Noites cremosas... as primeiras. Para ver o show
(proibido aos menores de 18 anos) levei a minha mãe... E Donna cantou, dançou e
rebolou. E Donna não precisou de efeitos especiais, voicoder e tela LCD para
garantir seu sucesso. Bastou uma ótima banda, um microfone e um biombo atrás do
qual ela deve ter trocado de roupa umas 4 ou 5 vezes para a alegria do público
e da minha puberdade. Logo depois comprei os LPs, Four Seasons of Love, o qual vinha com calendário com fotos da
musa, que pus na porta do meu quarto; depois, Bad Girls e Live and More.
Aí a música mudou e meu gosto também. Mas sempre nos lembramos do nosso
primeiro amor. Da primeira vez que o coração e o corpo entraram num uníssono,
num tremor que sempre será nosso “personal tsunami”. Cada um
tem o seu. O meu foi Donna Summer. Mulher que, se não foi
tropicalista, trouxe à minha vida muita alegria e que, para sempre,
vou amar.
sexta-feira, 18 de maio de 2012
sexta-feira, 11 de maio de 2012
Melting bote
Hoje comprei
Um pacote de
bolachas
No
supermercado
Hoje comprei
Um pacote de
bolachas
Diferentes
Da mesma
marca?
A de sempre
Porém de
trigo integral
Hoje comprei
Saúde?
Ou engano?
Hoje comprei
Um pacote de
bolachas
No super
engano
Hoje comprei
Um pacote de
bolachas
Diferentes
Da mesma
raça?
A de sempre
Porém de
sangue integral
Hoje comprei
ideologia
ou logro?
Hoje comprei
Um pacote de
bolachas
Diferentes
Da mesma
providência?
A de sempre
Porém de
burrice integral
Fui
enganado?
Não sei
Mas hoje
comprei
Compulsivamente
Um pacote
integral
De bolachas
Diferentes
Da marca de
sempre
Porque quero
ser integral
Ou integrado
Não sei
Mas
comprei...
quarta-feira, 9 de maio de 2012
Yes, nós queremos brioche!
A confusão da galinhada do Atala na última virada cultural
de São Paulo não deixa de ser a mais preocupante manifestação da maneira como uma
elite política de São Paulo mostra que não superou os arquétipos da sociedade
mais conservadora, no sentido mais monarquista do termo. Em resumo, a Virada Cultural
de São Paulo este ano agregou à musica uma degustação de pratos de chefs
servidos em bancas espalhadas pelo Minhocão, pelo preço módico de R$ 10,00 a R$
15,00, entre os quais o superestrelado Alex Atala e sua famosa galinhada. Infelizmente,
quem ficou horas esperando na fila da galinhada levou frango de goleiro e o
Atala não deu as caras, incapacitado que teria ficado, apesar do seu DOM, de
chegar até o lugar da comilança sem ser depenado. No dia seguinte da falsa
micareta, o secretário da cultura da cidade de São Paulo, Carlos Augusto Calil,
rebatando críticas, declarou que “A alta gastronomia nunca vai ser um evento de
massa”, rejeitando a culpa do mico sobre a imprensa que teria dado importância
demais ao acontecimento. Não pretendo aqui discutir o papel da imprensa nas
sociedades democráticas.
Basta lembrar que a imprensa deve ter liberdade de
expressão e o leitor liberdade de apreciação e de avaliação. Trata-se de uma
questão de equilíbrio, precário certo, porém necessário. Mas, se por um lado, o
fascismo aberto e descarado consiste em proibir a divulgação de opiniões e informações,
por outro lado, o fascismo disfarçado de democracia (e, portanto, ainda pior)
consiste em trocar a proibição pela crítica do uso da liberdade de opinião; isso
não passa de um diabólico envenenamento da comunicação democrática por meio do amargo
soro da dúvida sobre a objetividade (e, consequentemente, a deontologia
profissional) de quem divulgou a informação. Mas, além dessas considerações que
dizem respeito a uma profissão à qual não pertenço e que sabe muito bem se
defender sem mim, mais assustador é o teor segregacionista da declaração de um
secretário que da cultura parece só ter o título. Afinal, o que quer dizer “alta
gastronomia” em relação à comida de rua?
Não podemos esquecer que os
restaurantes da forma que os concebemos hoje provêm de um conceito que nasceu
no século 19, enquanto a comida servida nas ruas sempre fez parte das mais intrínsecas
formas de sociabilidade. Isso vale para todas as culturas desde que o mundo é
mundo e o Brasil não escapa dessa característica, como lembrou tão bem a
jornalista gastronômica Cristiana Couto em uma recente matéria do seu blog: http://sejabemvinho.blogfolha.uol.com.br/2012/04/18/como-era-a-comida-de-rua-ha-200-anos/
Mas, na nossa época em que o poder aquisitivo parece ser o único critério de
avaliação do valor do individuo, em que a inteligência vem sendo esmagada pelo limite
do cheque especial, em que as academias cuidam de todos os músculos menos do
cérebro, talvez o secretário da cultura da cidade de São Paulo seja mais um “digno”
representante dos tempos atuais. Tempos que não são mais racistas, mas em que o
politicamente correto trocou a diferença de cor da pele pela diferença de cor
do cartão de crédito. Assim, a segregação pelo paladar talvez seja o último
requinte de um desdém muito maior, da rejeição que se tem em relação à boa
parte da população, aquela que não deveria sair da copa, nem ter estação de
metrô para chegar ao shopping Higienópolis, shopping que, aliás, fica bem perto
do Minhocão onde desandou a popular galinhada, que, de repente, tornou-se
referência da “alta gastronomia”.
Tudo isso não passa de um triste sarcasmo escancaradamente
manifestado por quem transforma a comida de rua em “street food”, acreditando
que assim, por meio dessa americanização, o bom e velho rango adquiriu uma (fake)
legitimidade aristocrática. Pois bem, mas a história (e suas lendas) nos conta
que em 1789, quando o povo faminto de Paris chegou às portas do castelo de
Versalhes, a cerca de 20 km da capital, sem ter estação de metrô por perto, Maria-Antonieta
teria respondido que quem estivesse com fome precisava comer “brioche”. Isso
acabou lhe custando a cabeça. Algo a se meditar...
terça-feira, 8 de maio de 2012
O prazer do debate
Milton:
TALENTO E INTUIÇÃO
É estranho e ao mesmo
tempo fascinante como em termos de música brasileira ainda se possa ser
surpreendido por “verdades” que se supunha solidificadas e acomodadas de uma
forma confortável, e que de repente ressurgem como “novidades” porque se
mostram de um jeito como ainda não tínhamos visto. E é por se tratar de
figurões desta música que o fato é tanto surpreendente quanto substantivo
(relevante). Caetano e Chico são as figuras que motivam esta elucubração um
tanto difusa que vou tentar clarear.
Em primeiro lugar, de
toda a rica e prolífica geração surgida nos anos sessenta são hoje os dois que
mantém mais ativa e constante a veia criativa e com qualidade à altura de sua
obra anterior.
No caso de Caetano, numa
visão –ainda que tardia – de seus dois últimos trabalhos Cê (2006) e Zii
e Zie (2009) fica claro que continuam vivas sua inconfundível inventividade
e inquietação artística. Mas o que impressiona mesmo é a inovação e atualidade
de sua música. Cercando-se de músicos competentes e modernos a partir do filho
Moreno, mais Kassim e Pedro Sá, Caetano navega, camaleonicamente como é seu
estilo, numa sonoridade capaz de envolver tanto seu público cativo quanto
gerações bem mais jovens. O melhor exemplo disto é o que fazem, a banda e o
cantor, com Incompatibilidade de Gênios de João Bosco, um samba com
malemolência e veneno tipicamente brasileiros que teve, além da virtuosa
gravação do autor, outra com Clementina de Jesus, simplesmente transcendental.
Nessa versão “transmoderna”, pra usar um termo ao gosto do próprio cantor, com
a preciosa contribuição da Banda Cê, o que se houve é um amálgama de samba
sincopado e toques de balada mais a candente interpretação do mano Caetano. Um
luxuoso prazer ainda que envolto numa capa de minimalista modernidade.
Chico voltou à música no
ano passado (2011) depois de longa ausência envolvido com sua, a esta altura,
prestigiosa carreira literária. No álbum chamado simplesmente “Chico” ele
mantém o que foram algumas marcas de sua música em composições suaves e
delicadas. Nas letras o que à primeira vista pode parecer simples na verdade
contem elaboradas e singulares ideias representadas em sua sempre rica e às
vezes lúdica arquitetura de palavras.
Poesias e crônicas
desfilam numa diversidade de estilos que pode ir de “Meu Querido Diário” uma
espécie de versão atualizada do seu antigo “Cotidiano”, a “Se Eu Soubesse” que
pode lembrar uma chanson française. Há variações que tendem a um
tom mais reflexivo, mas sem atingirem um clima taciturno.
Sem pretender criar
nenhuma teoria localizo uma coincidência na experiência artística e de vida de
ambos. De uma forma ou de outra estão ou estiveram ligados à palavra escrita.
Caetano, que ainda nos
tempos de faculdade pretendeu ser crítico de cinema, anos atrás lançou um livro
muito bem escrito e sobretudo honesto, “Verdade Tropical”, sobre os primeiros
anos de sua carreira até partir para o exílio. Atualmente escreve uma coluna
aos domingos no “O Globo” no seu melhor estilo instigante e polemista.
Chico há muitos anos se
propõe uma alentada carreira literária e já afirmou que a literatura é muito
mais intrínseca nele que a música que seria “apenas instintiva”. Como leitor de
duas obras suas – “Budapeste” e “Leite Derramado” – me rendo absolutamente ao
seu talento como autor. Sempre bem recebido pela crítica (mesmo com algumas
contestações), é também um sucesso de vendas e editado em muitos países.
Minha pergunta é se o
fato de exercerem o ofício cartesiano da escrita, de alguma forma, como equilíbrio,
alimenta e estimula em suas respectivas personas, o lado mágico e
intuitivo da música.
Eu:
Concordo
plenamente com você em todos os pontos. É óbvio que existem diferenças
fundamentais entre Caetano e Chico, tanto nas personalidades quanto na verve artística
e criativa. No entanto, concordo quando você constata que são os últimos
grandes representantes e criadores da música brasileira que nasceu nos anos
1960.
No que
diz respeito a Caetano, o lado camaleão está onipresente em toda a carreira do
cantor. Nesse sentido, já foi feito por críticos o paralelo entre Caetano e
David Bowie. São artistas multifacetados que sempre souberam se inspirar nas
mais recentes ondas e tendências para criar uma obra em evolução permanente.
Contudo, é incontestável que, assim como Bowie, trata-se de um revestimento
sonoro, em uma corrida contra o tempo e o fato de envelhecer, já que, se você
ouvir Cê e Zii e Zie para além dos arranjos, verá que a estrutura
das composições de Caetano remete fundamentalmente às demais obras que ele
escreveu desde o começo da carreira. A mesma coisa acontece com a obra do
Bowie. Da mesma forma, a “transmodernidade” tão cara ao artista, ou o
“transsamba”, que em si é uma desconstrução de formas clássicas de composição
musical, é uma maneira atual de proceder a releituras, o que outros já fizeram
antes dele, notadamente um dos seus mais caros mestres, João Gilberto. Não é à
toa que “O homem velho” talvez seja a música mais pungente do CD Cê, assim
como “Never get old” foi do CD Reality de David Bowie. Acredito que grande
parte da inquietação desses dois artistas seja profundamente autorreferencial e
narcisista, sendo a busca permanente da criatividade um tipo de mecanismo, de
artefato para dar vazão a essa inquietação sobre a própria finitude, como um
“retrato de Dorian Gray”.
No caso
de Chico, há incontestavelmente uma preocupação bem parecida, mas de forma mais
reflexiva, como você diz, ou mais introvertida. Contudo, a inquietação
permanece em uma sofisticação cada vez maior da palavra, em jogo de pistas em
que as aparências enganam, os lugares e as épocas se confundem, numa mesma
corrida desenfreada contra o tempo, cujo fim, como em Leite Derramado,
tem como característica de ser tragicamente inelutável. Com o decorrer do
tempo, a jocosidade do malandro e do amante das “mulheres de Atenas”, foi
recuperada pela implacabilidade de nosso destino, algo que começou a se
desenhar em “O velho Francisco” e que, no CD Chico, está mais turva,
porém incontestavelmente presente nas entrelinhas das canções dedicadas ao
amor, à solidão e à relação de Chico com Thaís Gulin, que, sem dúvida,
constitui mais uma manifestação da corrida do artista contra o tempo, outro
retrato de Dorian Gray. Como se o artista epicurista tivesse descoberto a
tragédia grega.
Será que
Caetano e Chico são dois artistas wildianos? Quem sabe, essa seja a resposta à
tua pergunta final...
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