quarta-feira, 20 de junho de 2012

A insustentável leveza da leitura (e da torta de casca de batata...)



Há algo incrivelmente profundo, e ao mesmo tempo insustentavelmente leve, no ato de abrir um livro, folhear as suas páginas, sentir sua textura e seu cheiro, passar os olhos nos capítulos e parágrafos, percorrer o sumário como se estuda o mapa de uma trilha antes de iniciar a caminhada. Há algo incrivelmente leve, e ao mesmo tempo insustentavelmente profundo, no ato de escolher um livro para ser o companheiro temporário da nossa intimidade, ser o objeto de nossa atenção, dedicação e emoção por alguns momentos diários; ser aquele que apalpamos e levamos para a cama sem nenhum pudor; ser aquele que vigia, fiel guardião, no nosso criado-mudo enquanto dormimos; ser aquele que marcamos, dobramos, tatuamos, grafitamos, sublinhamos; aquele que afinal amamos e abandonamos, devoramos e trocamos por outro, deixando-o se empoeirar numa estante ou até, implacáveis, vendemos num sebo de bairro, oferecendo-o sem nenhum escrúpulo ao prazer alheio. Há algo incrivelmente belo e ao mesmo tempo insustentavelmente cruel no prazer da leitura. Prazer egoísta, hedonismo cerebral, curtição da retina por traz do véu das pálpebras, prazer egocêntrico e poligâmico do leitor com seus livros, reféns de um harém intelectual, ou de um lupanar... se pensarmos nos aficionados de Miller, Bukowski ou Manara.   

Pois bem, devo meu insustentável deleite atual à genial escritora americana Mary Ann Shaffer. Aos 74 anos, essa senhora da Virgínia Ocidental escreveu seu primeiro livro em 2008, em parceria com sua sobrinha Annie Barrows, sob o delicioso título: The Guernsey Literary and Potato Peel Pie Society. Utilizando o trunfo da troca de cartas, Mary Ann Shaffer nos leva ao encontro de personagens apaixonantes na Inglaterra pós Segunda Guerra Mundial, entre os quais, os seletivos membros de um impagável círculo literário da ilha de Guernsey e de sua especialidade, uma torta feita com casca de batata! Assim pode parecer bem pouco, mas garanto que o livro é puro prazer, ao mesmo tempo "so British" e atemporal já que mostra que, mesmo nos piores momentos, somos capazes da maior imaginação e dos mais surpreendentes recursos para superar as nossas desavenças.

E assim se dá o prazer da leitura. Com poucas coisas: ocasião, aconchego, recanto, porém sempre com vontade e mente aberta, viaja-se até uma ilha anglo-normanda para desfrutar o prazer de comer torta de casca de batata em boa companhia. Nada muito caro e que requeira gastar as milhas esforçadamente juntadas no cartão de crédito.

Ah, “last but not least”, Mary Ann Shaffer faleceu em 2008, antes mesmo da publicação do livro. Assim, ela nos traz alegria para além do seu último sopro e por isso deve ser muito agradecida. Ah, “last but not least (once again)”, o livro foi lançado em 2009 no Brasil pela editora Rocco sob o título Sociedade Literária e a Casca de Batata. Não sei o que a tradução vale, mas talvez valha experimentar... e saborear uma deliciosa torta de casca de batata.  

2 comentários:

  1. Nunca fui um devorador de livros. Muitos que li me levaram sim a este deleite que descreve. As viagens que só a literatura extrai de nossa mente. Mas por enquanto curto muito ler sobre e por quem sabe nos lembrar o admirável mundo que um livro desse pode nos levar. Bom ler. Vou voltar lá.

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  2. Aos que não sabem viver sem estarem ligados à leitura de um livro (às vezes mais de um, simultâneos), é inevitável a identificação com este seu texto. Quando pré-adolescente li a primeira obra que foi escolha minha,e descobri esta mágica possibilidade de ligação íntima com um objeto que significava a abertura para o universo de sonho e imaginação, alem da aventura intelectual. Nunca mais pude viver sem isto. Foi por sentir com o livro que leio no momento exatamente a mesma sensação tão inspiradamente descrita pelo seu texto que não resisti e escrevi um cometário antes de terminá-lo. Esta minha leitura é "Sou Dona da Minha Alma" de Nadia Fusini, sobre a vida,obra e o tempo de Virginia Woolf e te enviei o texto, não sei se você leu.O que quero é dizer é que seu artigo acerta na mosca ao delinear com delicadeza esta relação nem sempre puramente abstrata entre leitor e livro.

    Milton

    PS: parece que você ganhou uma família de leitores

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