Quem nunca viveu a mais abrupta ruptura? Quem nunca presenciou a mais inesperada fratura? Quem jamais sentiu a mais aguda dor? Quem nunca passou por nada disso que atire a primeira pedra...na própria cara. Até a Eternidade está desoladamente estreando em São Paulo numa única sala, no Itaú Frei Caneca (prova do que apesar da crise atual e do movimento “occupy” os bancos ainda têm valor e razão de ser). Até a eternidade fez muito sucesso na França em 2010 – informação valiosa numa época em que os ossos do ofício foram substituídos pelo suor do box office. O diretor, Guillaume Canet, já mostrou todo o seu talento na sua estreia a cargo do ótimo thriller Não conte a ninguém, sutilmente adaptado do romance de Harlan Coben. Até a eternidade é um título um tanto bobo em relação ao título francês Les petits mouchoirs (os lencinhos) já que o filme não trata da eternidade, mas do tempo presente e da capacidade ou incapacidade de encararmos nossa efemeridade. Talvez por isso o filme traga uma das mortes mais secamente violentas que eu já vi no cinema (exatamente por não ser cinematograficamente sangrenta) e talvez por isso mostre sentimentos violentamente à flor da pele, brotando como espinhas no sol, como marcas da estação. O ato de morrer é mais curto do que a palavra em si, e se morremos um pouco a cada dia, também construímos a nossa vida como se esquecêssemos da encenação do último ato, da derradeira fala... que nos pega de surpresa e que queremos recordar até o apagão fatal. Contradição? Até a eternidade não traz respostas, porém desperta perguntas e faz com que amemos mais viver o instante, a instantaneidade. E por isso o filme merece ser visto. Além dos ótimos atores, entre os quais François Cluzet e a sempre impecável e emocionante Marion Cotillard.
sexta-feira, 6 de julho de 2012
Prepare seu lencinho
Quem nunca viveu a mais abrupta ruptura? Quem nunca presenciou a mais inesperada fratura? Quem jamais sentiu a mais aguda dor? Quem nunca passou por nada disso que atire a primeira pedra...na própria cara. Até a Eternidade está desoladamente estreando em São Paulo numa única sala, no Itaú Frei Caneca (prova do que apesar da crise atual e do movimento “occupy” os bancos ainda têm valor e razão de ser). Até a eternidade fez muito sucesso na França em 2010 – informação valiosa numa época em que os ossos do ofício foram substituídos pelo suor do box office. O diretor, Guillaume Canet, já mostrou todo o seu talento na sua estreia a cargo do ótimo thriller Não conte a ninguém, sutilmente adaptado do romance de Harlan Coben. Até a eternidade é um título um tanto bobo em relação ao título francês Les petits mouchoirs (os lencinhos) já que o filme não trata da eternidade, mas do tempo presente e da capacidade ou incapacidade de encararmos nossa efemeridade. Talvez por isso o filme traga uma das mortes mais secamente violentas que eu já vi no cinema (exatamente por não ser cinematograficamente sangrenta) e talvez por isso mostre sentimentos violentamente à flor da pele, brotando como espinhas no sol, como marcas da estação. O ato de morrer é mais curto do que a palavra em si, e se morremos um pouco a cada dia, também construímos a nossa vida como se esquecêssemos da encenação do último ato, da derradeira fala... que nos pega de surpresa e que queremos recordar até o apagão fatal. Contradição? Até a eternidade não traz respostas, porém desperta perguntas e faz com que amemos mais viver o instante, a instantaneidade. E por isso o filme merece ser visto. Além dos ótimos atores, entre os quais François Cluzet e a sempre impecável e emocionante Marion Cotillard.
quarta-feira, 20 de junho de 2012
A insustentável leveza da leitura (e da torta de casca de batata...)
Há algo incrivelmente profundo, e ao mesmo tempo insustentavelmente leve, no ato de abrir um livro, folhear as suas páginas, sentir sua textura e seu cheiro, passar os olhos nos capítulos e parágrafos, percorrer o sumário como se estuda o mapa de uma trilha antes de iniciar a caminhada. Há algo incrivelmente leve, e ao mesmo tempo insustentavelmente profundo, no ato de escolher um livro para ser o companheiro temporário da nossa intimidade, ser o objeto de nossa atenção, dedicação e emoção por alguns momentos diários; ser aquele que apalpamos e levamos para a cama sem nenhum pudor; ser aquele que vigia, fiel guardião, no nosso criado-mudo enquanto dormimos; ser aquele que marcamos, dobramos, tatuamos, grafitamos, sublinhamos; aquele que afinal amamos e abandonamos, devoramos e trocamos por outro, deixando-o se empoeirar numa estante ou até, implacáveis, vendemos num sebo de bairro, oferecendo-o sem nenhum escrúpulo ao prazer alheio. Há algo incrivelmente belo e ao mesmo tempo insustentavelmente cruel no prazer da leitura. Prazer egoísta, hedonismo cerebral, curtição da retina por traz do véu das pálpebras, prazer egocêntrico e poligâmico do leitor com seus livros, reféns de um harém intelectual, ou de um lupanar... se pensarmos nos aficionados de Miller, Bukowski ou Manara.
Pois bem, devo meu insustentável deleite atual à genial escritora americana Mary Ann Shaffer. Aos 74 anos, essa senhora da Virgínia Ocidental escreveu seu primeiro livro em 2008, em parceria com sua sobrinha Annie Barrows, sob o delicioso título: The Guernsey Literary and Potato Peel Pie Society. Utilizando o trunfo da troca de cartas, Mary Ann Shaffer nos leva ao encontro de personagens apaixonantes na Inglaterra pós Segunda Guerra Mundial, entre os quais, os seletivos membros de um impagável círculo literário da ilha de Guernsey e de sua especialidade, uma torta feita com casca de batata! Assim pode parecer bem pouco, mas garanto que o livro é puro prazer, ao mesmo tempo "so British" e atemporal já que mostra que, mesmo nos piores momentos, somos capazes da maior imaginação e dos mais surpreendentes recursos para superar as nossas desavenças.
E assim se dá o prazer da leitura. Com poucas coisas: ocasião, aconchego, recanto, porém sempre com vontade e mente aberta, viaja-se até uma ilha anglo-normanda para desfrutar o prazer de comer torta de casca de batata em boa companhia. Nada muito caro e que requeira gastar as milhas esforçadamente juntadas no cartão de crédito.
Ah, “last but not least”, Mary Ann Shaffer faleceu em 2008, antes mesmo da publicação do livro. Assim, ela nos traz alegria para além do seu último sopro e por isso deve ser muito agradecida. Ah, “last but not least (once again)”, o livro foi lançado em 2009 no Brasil pela editora Rocco sob o título Sociedade Literária e a Casca de Batata. Não sei o que a tradução vale, mas talvez valha experimentar... e saborear uma deliciosa torta de casca de batata.
sexta-feira, 1 de junho de 2012
E La Nave Va
Escoteiro
Chefiando a
fileira
Dando o
ritmo
Distribuindo
chibatas
E batinas
O gado segue
Indolente
Antes de
imolado
De tropeçar
e cair
Desfiladeiro
abaixo
Seleção natural
Sulco dietético
Derramado no
rego
Esparramando
o ego
Escroto
Chefiando a
roubalheira
Sempre alheio
Partilhando o
dízimo
Como do
Cristo
O orgânico corpo
A hóstia
integral
A santa medalha
Que
carregamos
No pescoço
Como o sino
Do gado
Indolente
Antes do
matadouro
Escotilha
Última salvação
Antes da
deriva
Do último banho
Da derradeira
praia
Da afundada
Piazza
San Marco
Narrador ou rinoceronte
Herói ou vítima
De seriado
Ùltima temporada
À procura de Tadzio
Antes de bater as botas
La nave va...
sexta-feira, 18 de maio de 2012
Alegria, alegria
Donna
Summer. “Donna se meurt”, como uma piada de mau gosto costumava chamá-la da França
no fim dos anos 1970. Só que Donna morreu e a piada ficou ainda mais idiota. Donna
se foi, repentina, num surpreendente susto, num último soluço de fim de noitada.
E na hora que eu soube da notícia, caí num mar de lembranças, "down deep inside", numa apneia cerebral e
emocional. Nas profundezas da nossa alma estão os fundamentos da nossa
credulidade, da nossa inocência, a construção do nosso “ciente e inconsciente”,
dos nossos idos e das nossas revoltas, das nossas libidos e reviravoltas. Na
estranheza das nossas entranhas estão os mais volutuosos suspiros, os “Love to
Love You, Baby”, os “I Feel Love”, hipnóticos, cardiacamente
tesudos, batimentos que de tão batidos ficaram impregnados no coletivo, na
construção do “ciente e inconsciente” do mundo, numa pista de boate gigante, um
gargantuesco baile, para sempre. Donna se foi, e lá se vão os anéis da minha adolescência
(os dedos, guardo para as futuras artroses), o ouro da juventude, a descoberta
do groove e do grude, as noites em
claro, tentando acalmar o ímpeto do calor das ondas, batendo o leite até virar
creme, com as “Bad Girls”, sussurrando nos meus ouvidos. “I Remember Yesterday”.
O ano era 1977 ou 1978, o Zenith em Paris, show da Donna Summer. Eu tinha 14 ou
15 anos. Noites em claro; já. Noites cremosas... as primeiras. Para ver o show
(proibido aos menores de 18 anos) levei a minha mãe... E Donna cantou, dançou e
rebolou. E Donna não precisou de efeitos especiais, voicoder e tela LCD para
garantir seu sucesso. Bastou uma ótima banda, um microfone e um biombo atrás do
qual ela deve ter trocado de roupa umas 4 ou 5 vezes para a alegria do público
e da minha puberdade. Logo depois comprei os LPs, Four Seasons of Love, o qual vinha com calendário com fotos da
musa, que pus na porta do meu quarto; depois, Bad Girls e Live and More.
Aí a música mudou e meu gosto também. Mas sempre nos lembramos do nosso
primeiro amor. Da primeira vez que o coração e o corpo entraram num uníssono,
num tremor que sempre será nosso “personal tsunami”. Cada um
tem o seu. O meu foi Donna Summer. Mulher que, se não foi
tropicalista, trouxe à minha vida muita alegria e que, para sempre,
vou amar.
sexta-feira, 11 de maio de 2012
Melting bote
Hoje comprei
Um pacote de
bolachas
No
supermercado
Hoje comprei
Um pacote de
bolachas
Diferentes
Da mesma
marca?
A de sempre
Porém de
trigo integral
Hoje comprei
Saúde?
Ou engano?
Hoje comprei
Um pacote de
bolachas
No super
engano
Hoje comprei
Um pacote de
bolachas
Diferentes
Da mesma
raça?
A de sempre
Porém de
sangue integral
Hoje comprei
ideologia
ou logro?
Hoje comprei
Um pacote de
bolachas
Diferentes
Da mesma
providência?
A de sempre
Porém de
burrice integral
Fui
enganado?
Não sei
Mas hoje
comprei
Compulsivamente
Um pacote
integral
De bolachas
Diferentes
Da marca de
sempre
Porque quero
ser integral
Ou integrado
Não sei
Mas
comprei...
quarta-feira, 9 de maio de 2012
Yes, nós queremos brioche!
A confusão da galinhada do Atala na última virada cultural
de São Paulo não deixa de ser a mais preocupante manifestação da maneira como uma
elite política de São Paulo mostra que não superou os arquétipos da sociedade
mais conservadora, no sentido mais monarquista do termo. Em resumo, a Virada Cultural
de São Paulo este ano agregou à musica uma degustação de pratos de chefs
servidos em bancas espalhadas pelo Minhocão, pelo preço módico de R$ 10,00 a R$
15,00, entre os quais o superestrelado Alex Atala e sua famosa galinhada. Infelizmente,
quem ficou horas esperando na fila da galinhada levou frango de goleiro e o
Atala não deu as caras, incapacitado que teria ficado, apesar do seu DOM, de
chegar até o lugar da comilança sem ser depenado. No dia seguinte da falsa
micareta, o secretário da cultura da cidade de São Paulo, Carlos Augusto Calil,
rebatando críticas, declarou que “A alta gastronomia nunca vai ser um evento de
massa”, rejeitando a culpa do mico sobre a imprensa que teria dado importância
demais ao acontecimento. Não pretendo aqui discutir o papel da imprensa nas
sociedades democráticas.
Basta lembrar que a imprensa deve ter liberdade de
expressão e o leitor liberdade de apreciação e de avaliação. Trata-se de uma
questão de equilíbrio, precário certo, porém necessário. Mas, se por um lado, o
fascismo aberto e descarado consiste em proibir a divulgação de opiniões e informações,
por outro lado, o fascismo disfarçado de democracia (e, portanto, ainda pior)
consiste em trocar a proibição pela crítica do uso da liberdade de opinião; isso
não passa de um diabólico envenenamento da comunicação democrática por meio do amargo
soro da dúvida sobre a objetividade (e, consequentemente, a deontologia
profissional) de quem divulgou a informação. Mas, além dessas considerações que
dizem respeito a uma profissão à qual não pertenço e que sabe muito bem se
defender sem mim, mais assustador é o teor segregacionista da declaração de um
secretário que da cultura parece só ter o título. Afinal, o que quer dizer “alta
gastronomia” em relação à comida de rua?
Não podemos esquecer que os
restaurantes da forma que os concebemos hoje provêm de um conceito que nasceu
no século 19, enquanto a comida servida nas ruas sempre fez parte das mais intrínsecas
formas de sociabilidade. Isso vale para todas as culturas desde que o mundo é
mundo e o Brasil não escapa dessa característica, como lembrou tão bem a
jornalista gastronômica Cristiana Couto em uma recente matéria do seu blog: http://sejabemvinho.blogfolha.uol.com.br/2012/04/18/como-era-a-comida-de-rua-ha-200-anos/
Mas, na nossa época em que o poder aquisitivo parece ser o único critério de
avaliação do valor do individuo, em que a inteligência vem sendo esmagada pelo limite
do cheque especial, em que as academias cuidam de todos os músculos menos do
cérebro, talvez o secretário da cultura da cidade de São Paulo seja mais um “digno”
representante dos tempos atuais. Tempos que não são mais racistas, mas em que o
politicamente correto trocou a diferença de cor da pele pela diferença de cor
do cartão de crédito. Assim, a segregação pelo paladar talvez seja o último
requinte de um desdém muito maior, da rejeição que se tem em relação à boa
parte da população, aquela que não deveria sair da copa, nem ter estação de
metrô para chegar ao shopping Higienópolis, shopping que, aliás, fica bem perto
do Minhocão onde desandou a popular galinhada, que, de repente, tornou-se
referência da “alta gastronomia”.
Tudo isso não passa de um triste sarcasmo escancaradamente
manifestado por quem transforma a comida de rua em “street food”, acreditando
que assim, por meio dessa americanização, o bom e velho rango adquiriu uma (fake)
legitimidade aristocrática. Pois bem, mas a história (e suas lendas) nos conta
que em 1789, quando o povo faminto de Paris chegou às portas do castelo de
Versalhes, a cerca de 20 km da capital, sem ter estação de metrô por perto, Maria-Antonieta
teria respondido que quem estivesse com fome precisava comer “brioche”. Isso
acabou lhe custando a cabeça. Algo a se meditar...
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